A longa viagem de Yvonne Bezerra de Mello
A distância entre a casa de Yvonne Bezerra e a comunidade onde ela trabalha é muito maior do que a viagem de 20 minutos para chegar lá. O prédio de apartamentos de Yvonne, aninhado em um arco da baía mais famosa do Rio, é um endereço tradicional e sofisticado com vista para o mar, um porteiro uniformizado e um lobby que oferece revistas com títulos como Iates e Investimento. De fato, a mãe e avó poliglota, pedagoga educada na Sorbonne poderia ser facilmente confundida com um exemplo perfeito daquelas mulheres que se ocupam almoçando juntas em restaurantes caros — mas o almoço de Yvonne acontecesse quase todos os dias em Uerê, a escola que ela fundou há vinte anos, uma comida que ela compartilha com dezenas de crianças pobres, geralmente negras, em uma das favelas mais perigosas e menos acessíveis do Rio, onde até a polícia tem medo de entrar.
Yvonne atravessa aquele curto infinito todas as manhãs enquanto dirige seu carro, sozinha, para uma área que grande parte dos cariocas passará uma vida sem visitar — uma favela, ou como é mais educadamente ou condescendentemente conhecida, uma comunidade. Para muitas pessoas de classe média no Rio, a favela é a realidade mais próxima e mais distante que existe. O recíproco é verdadeiro vindo da direção oposta: habitantes das favelas do Rio, embora fisicamente próximos de bairros ricos, estão tão longe dos serviços públicos mais básicos que eles se referem a lugares como Ipanema ou Copacabana não como “a praia”, mas como “asfalto” — uma palavra que simboliza a civilidade básica e a dignidade mínima dos serviços urbanos dos quais foram privados.
Uma breve visita a favelas do Rio revela a ausência daquilo que costumamos nem notar por considerar essencial: estradas pavimentadas, hidrantes, bueiros, água encanada, esgoto adequado, escolas, áreas esportivas e de entretenimento, fornecimento de gás de cozinha, eletricidade, correio. Alguns desses serviços existem, mas raramente são fornecidos pelo estado ou empresas de serviços públicos — um vácuo que é preenchido por gangues criminosas ou grupos de policiais ou ex-policiais foras-da-lei, conhecidos no Rio como “milicianos”. Eles cobram taxas mensais por “proteção” e determinam que coisas como gás de cozinha sempre sejam compradas do mesmo fornecedor. Em outras palavras, viver em uma favela significa viver com medo de criminosos e milicianos. Também significa ter medo até policial honesto e bem-intencionado.
No dia em que vim visitar o Uerê no Complexo da Maré, vi Yvonne tentando convencer uma menina de seis anos a aceitar uma pomada para suas feridas na boca. A garota não respondia a nenhuma de suas perguntas, nem mesmo abria a boca, como se dentro dela houvesse um soluço que ela tentava manter preso. Por longos segundos estavam ali apenas Yvonne e a garota, se olhando em silêncio, segurando as mãos uma da outra. A garota havia perdido a fala alguns dias antes, quando testemunhou sua tia sendo morta por uma “bala perdida” — uma causa mortis que se tornou tão carioca quanto o Cristo, que descreve alguém morto a tiros não por intenção, mas por má pontaria, inépcia, ou identificação incorreta, uma morte ainda mais obscena por ser o fruto da sorte, ou do azar que atinge aqueles que nasceram no lugar errado.
Pode-se argumentar que a pior coisa que acontece em uma favela não é a morte prematura, mas uma vida vivida com medo. Um cartaz gigante no telhado do Uerê mostra como a vida foi desvalorizada nessas terras, e como é fácil perdê-la. Ele informa aqueles que sobrevoam a área que o prédio é uma “escola, não atire”, uma mensagem certamente dirigida à polícia, o único lado dessa guerra urbana que possui helicópteros e atira do céu. É difícil entender como as crianças podem prosperar em tal ambiente, mas elas conseguem, e o Uerê e outras iniciativas não-governamentais têm sido cruciais para isso.
Yvonne Bezerra de Mello ficou conhecida em 1993 quando algumas das crianças sem-teto pra quem ela dava aulas — nas ruas, debaixo da ponte — se tornaram vítimas do notório Massacre da Candelária, o assassinato de oito crianças, algumas com 11 anos, cometido por um grupo criminoso que incluía membros das forças policiais. Anos depois Yvonne chegaria às manchetes novamente quando um dos sobreviventes daquele massacre, então já adulto, manteve vários passageiros de ônibus como reféns por horas, tudo transmitido ao vivo na TV, um evento destruidor de nervos que terminou com a morte do criminoso e de um dos seus reféns, ambos mortos pela polícia. A história do ônibus 174 foi contada em pelo menos um longa-metragem e um documentário.
Hoje, Yvonne tenta proporcionar às crianças algumas das condições necessárias para uma vida feliz que vão além da segurança e do esgoto: o conhecimento, a alimentação e o instrumento mais intangível e inestimável para a felicidade — a capacidade de sonhar. É por isso que o Uerê não só fornece três refeições saudáveis (e deliciosas) por dia para as quase 400 crianças matriculadas, de 6 a 18 anos, mas também proporciona outros elementos essenciais para mantê-las confiantes, orgulhosas e preparadas, como a capacidade de enunciar os pensamentos com eloquência, de tocar um instrumento, de conhecer as capitais do mundo, de falar uma língua estrangeira. Isso já foi feito pelo Uerê para 7 mil crianças até agora. Eu conheci um garoto de 15 anos que chegou ao Uerê anos atrás quase incapaz de dizer uma palavra em público. Agora ele toca o celo e carrega o orgulho de um garoto que sabe que tem talento — que teve a chance de provar que tem talento. Esse é outro direito recusado à maioria das pessoas nascidas em uma favela — a crença na mobilidade social, a esperança de que uma pessoa pode deixar esta vida em condição melhor do que entrou. Ver aquele menino com orgulho e autoconfiança é outro milagre realizado pelas Yvonnes deste mundo, que acreditam que todo mundo tem valor e alguma beleza para devolver a esta vida, assim como uma beleza para dela receber.
O Uerê vem se mantendo com a ajuda de algumas empresas, doadores privados e com a convicção contagiante de Yvonne Bezerra de Mello, que inventou o método pedagógico Uerê-Mello, escolhido pelo Unicef como um dos seis mais eficientes métodos em zonas de guerra. A mulher brasileira mais premiada — Yvonne me conta — luta constantemente para manter o Uerê funcionando, e o orçamento da escola está coberto apenas até o final de agosto. Isso é ainda mais preocupante porque o Uerê é um projeto — como a maioria dos bons projetos de educação — que pode economizar muito dinheiro para o contribuinte em custos com saúde, educação e segurança. Mais do que isso, escolas como Uerê — verdadeiros refúgios de tranquilidade e aprendizado no meio de uma das áreas mais violentas do Rio — às vezes são a única chance que essas crianças terão de uma infância enriquecedora e plenamente formativa.
Eu perguntei a crianças no Uerê, entre as idades de 12 e 15 anos, o que era bom e ruim em morar na Maré. Ficou difícil dizer sob qual classificação (boa ou ruim) algumas das coisas estavam listadas. Elas pareciam concordar que uma coisa ruim era o medo do “tráfico” (o tráfico de drogas), e como era difícil para as crianças irem de uma área até a outra, passando por territórios de diferentes gangues criminosas. A coisa boa, eles também pareciam concordar, era a “ausência de crime”. Parece uma dissociação intrigante para os visitantes de primeira viagem, mas não quando se lembra que muitos traficantes argumentam que não são ladrões e não estão roubando de ninguém, mas apenas cometendo um crime sem vítimas para preencher uma demanda. “Mas alguém entrou na mercearia no outro dia e roubou a mercadoria”, diz uma criança, mostrando que a ausência de crimes com vítimas não é absoluta. Daí outra criança esclarece, dando o desfecho da história: “Mas o ladrão foi pego e mataram uma semana depois”.
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