Espiões — Traição, Segredos, Paranoia
[Esta é A TERCEIRA PARTE da tradução do livro original de minha autoria, publicado no Reino Unido, que disponibilizo gratuitamente porque detenho os direitos autorais em Português. Para quem preferir no original, e pela Amazon USA, vai aqui o link. A primeira parte em Português está aqui, e a segunda parte, aqui.]
Teste do sofá
(Im) Perfeito para a tarefa
Os espiões frequentemente delineiam o perfil psicológico das pessoas que investigam, mas qual é o perfil de um espião? Quais são os traços de personalidade comuns àqueles cujo trabalho demanda segredo, desonestidade, risco, traição e o desmerecimento de si mesmo exigidos por uma vida dupla compulsória?
Por admissão deles próprios, os espiões são essencialmente traidores — quer do seu país, se forem agentes duplos, ou traidores dos indivíduos que neles confiam e os quais enganam, se o espião for um bom profissional. Espiões vivem um tipo de dualidade moral, de acordo com David Charney, um psiquiatra que trabalhou para a comunidade de inteligência por décadas e foi designado pela CIA para fazer avaliações psiquiátricas. “Quando eles vão para o exterior,” diz Charney, “o trabalho do espião é mentir e roubar, e eles não têm problema com isso porque veem [essas atividades] como parte de seu patriotismo pelo seu próprio país.”
Embora a coleta de informações (inteligência) possa ser protegida pela lei, a espionagem (feita por terceiros) não é, e alguns países que não têm a pena de morte podem criar uma exceção para pessoas pegas espionando em nome de uma nação estrangeira. O patriotismo tem sido usado como razão para a espionagem, mas será que ele é mesmo a principal motivação de um espião? Existe de fato um propósito altruísta que impulsiona aqueles que fazem amigos para enganá-los? E quanto aos riscos de prisão e morte enfrentados por espiões? Eles são simplesmente tolerados por causa desse “propósito maior”, ou são na verdade incentivos? Essas pessoas são corajosas ou extremamente covardes? Falta a eles a moralidade ou lhes sobra abnegação e sacrifício?
Quem espia?
Especialistas e membros da comunidade de inteligência citam quatro razões principais pelas quais as pessoas se tornam espiões: dinheiro, ideologia, coerção e ego, uma lista cujas iniciais formam a palavra que em inglês significa “ratos”. MICE, o acrônimo auto-explicativo, fora inicialmente usado para definir as motivações de um traidor, ou agente duplo, mas há muito ele já é amplamente aceito como o conjunto das principais motivações em espionagem — mesmo aquela feita “para o bem”.
Enquanto dinheiro é uma motivação natural para os espiões — como o é para qualquer empregado assalariado em outras áreas — para agentes duplos e traidores, o que motiva a sua deslealdade é mais dinheiro. Randy Burkett, representante da CIA na Escola de Pós-Graduação Naval dos EUA, observou que “em um estudo de 104 americanos que espionaram [para países inimigos] e que foram pegos entre 1947 e 1989, a maioria, de fato um número crescente ao longo dos anos, relatou que o dinheiro era o único ou principal motivador.”
Mas enquanto o dinheiro é um motivador primário, as narrativas morais são cruciais para o recrutamento eficiente de espiões, e a criação de inimigos é essencial para essas narrativas e histórias de suposto heroísmo. Sem um inimigo externo a ser combatido, os assassinatos e roubos cometidos em espionagem não teriam nada que os redimissem. Alguns governos justificam as transgressões morais do seu serviço secreto com base em supostas ameaças à nação, o que também ajuda a satisfazer dois outros critérios de MICE: Ideologia e Ego. Psicologicamente, mesmo que o próprio espião reconheça que ele não está trabalhando para uma causa maior — e os testemunhos indicam ser esse o caso da maioria deles — a ideologia é uma cobertura moral muito útil que ajuda os espiões a justificar suas escolhas para parentes e entes queridos se um dia eles forem descobertos.
Um famoso traidor, ou agente duplo, que acreditava ter sido motivado pela ideologia é Kim Philby, um membro do Cambridge Five — cinco espiões provenientes do Trinity College da Universidade de Cambridge que traíram seu país e seus colegas pela União Soviética, enganando o Reino Unido e seus serviços de inteligência por décadas. Em suas memórias, Philby explica sua escolha supostamente moral (ainda que ele sugira mais tarde que seus nobres ideais não foram respeitados por seus líderes): “Eu já havia decidido aos dezenove anos, depois de um boa olhada ao meu redor, que era tudo muito bom por muito tempo para os ricos, e que o pobre só se dava mal, e que era hora de que aquilo tudo mudasse.”
Nem todos acreditam que a motivação de Philby foi ideológica. John Le Carré, o autor de romances de espionagem que também foi ele próprio um espião, e que acredita que sua identidade foi revelada indevidamente por Philby, disse sobre ele: “Philby não tem casa, nem mulheres, nem fé. Por trás da arrogância de classe alta herdada, e o gosto pela aventura, está o auto-ódio de um desajustado vaidoso para quem nada será digno de sua lealdade. Em última instância, Philby é conduzida pela droga incurável do poder de enganar.”
Ana Montes, analista sênior da poderosa Agência de Inteligência de Defesa dos Estados Unidos (DIA), também foi motivada por ideologia para trair seu país, espionando para Cuba por mais de 16 anos sem qualquer recompensa financeira além de seu salário regular pago pelo governo dos EUA.
Recrutadores de espiões veneram ideólogos genuínos porque eles são difíceis de corromper. O contrário é verdade, no entanto, para oficiais de contrainteligência em busca de espiões estrangeiros dispostos a trair seus países — ideólogos, nesse caso, são detestados porque é difícil cooptá-los. Isso de certa forma ilustra a essência sórdida da espionagem: qualquer pessoa que traia o meu país é vil, a menos que ele traia o seu próprio país em favor da minha terra natal, em cujo caso ele é um herói.
A coerção, ou o C em MICE, é muitas vezes realizada através de chantagem, e o número de espiões potencialmente recrutáveis através desse método é ilimitado. Esse procedimento não é apenas eficiente; ele é também o mais disponível hoje. Isso porque nunca foi tão fácil para um governo, através de vigilância e interceptação, descobrir algo do qual o alvo pode se envergonhar e que, portanto, possa ser usado contra ele. É de extrema ingenuidade achar que se você não comete nenhum crime, você estará isento do risco de coerção. Qualquer detalhe que se queira manter secreto serve para a chantagem, desde coisas tão inofensivas como a categoria escolhida por alguém em um site pornográfico, até um comentário imprudente sobre a amiga atraente da esposa. Qualquer um que queira manter qualquer segredo, mesmo que apenas de uma única pessoa, pode facilmente ser chantageado. As agências de inteligência — e principalmente as firmas de inteligência privada — vêm historicamente usando vários tipos de informação privada para coagir outras pessoas a espionar, como orientação sexual, dívida financeira e questões médicas. Em certas áreas do Oriente Médio, por exemplo, onde ser gay pode causar a morte, espiões homossexuais têm mais condições de reunir munição para chantagem e são, portanto, frequentemente enviados para essas regiões. Mulheres espiãs podem ser igualmente eficientes em seduzir políticos casados, policiais e agentes secretos que teriam suas famílias destruídas pela divulgação de um caso extraconjugal.
Embora muitas vezes esquecidos como motivações em potencial, a emoção e o ego — o E em MICE — impulsionam praticamente todos os espiões. Um agente secreto que não gosta da emoção do seu trabalho é como um cirurgião de emergência que não aguenta ver sangue. Para muitos agentes, a espionagem é a solução para o desejo de viver uma vida de crime, porém com o apoio da lei ou do governo. É a delinquência que se acredita ser “para o bem.” Em relação ao ego, o psiquiatra da CIA, Charney, chega a surpreender com a simplicidade de sua avaliação. “Eu fiz uma grande descoberta,” ironiza ele. “Eu encontrei o marcador genético para os espiões — é o cromossomo Y.” Charney diz que mais de 95% dos espiões são homens e qualquer pessoa com bastante “orgulho e ego masculinos” pode se adequar ao perfil. Diante dessa constatação, é surpreendente que a relação entre um espião e seu chefe muitas vezes se assemelhe àquela entre uma prostituta e seu cafetão.
Esta relação profissional é pessoal e intransferível
Um dos relacionamentos mais interessantes e, por sua natureza, mais complicados na vida de um espião é entre ele e seu chefe imediato, em inglês conhecido como handler (manuseador, treinador, controlador, manejador). Para recrutar e motivar espiões, recrutadores e handlers estabelecem um delicado equilíbrio de poder com seu agente. As técnicas essenciais para a criação de vínculos e limites entre handler e agente são descritas por outro acrônimo revelador: RASCLS [em inglês, rascal é uma pessoa desonesta, sem escrúpulos]. As iniciais indicam Reciprocidade, Autoridade, Escassez, Compromisso/Consistência e Apreciação (liking). O conceito de RASCLS foi desenvolvido pela primeira vez pelo especialista em marketing e psicólogo Robert Cialdini em seu livro Influência — Ciência e Prática, uma teoria largamente aceita que já foi corroborada em estudos publicados pela CIA. Espionagem e marketing, como defende a teoria, têm uma missão central em comum: persuadir as pessoas a fazer algo que talvez não seja do seu interesse.
Os recrutadores, assim como acontece em áreas que não envolvem espionagem, atraem seus alvos com os seguintes incentivos:
• Reciprocidade. Isso implica em fazer com que o recrutado se sinta favorecido, seja com a emissão de um visto para um membro da sua família ou ganhando uma caixa de seu chocolate favorito. Esse tipo de favor induz o recrutado a retribuir. É um tipo de cortesia social que se torna essencial no relacionamento espião-handler.
• Autoridade. Isso funciona não apenas como meio de impor respeito, mas também na criação um modelo a ser admirado e copiado pelo espião. O handler exercerá sua autoridade enfatizando seu poder de destruir — ou salvar — a vida do seu subordinado.
• Escassez. Isso serve para fazer o espião se sentir como alguém a quem foi oferecida uma oportunidade, não um mero emprego, e que tal chance é passageira e não será oferecida novamente. Para isso, um recrutador deve cultivar uma ideia dupla: que, se por um lado o agente é muito importante para uma missão, ele também é facilmente substituível.
• Consistência. As pessoas não gostam de serem pegas realizando ações contraditórias, e é aí que a consistência e o compromisso entram em jogo. Isso é particularmente útil se o espião a ser recrutado já forneceu ao handler alguma informação secreta — se ele já o fez, e considerou tal ato justificável, é mais provável que ele o continue fazendo.
• Apreciação. O bom relacionamento entre manipulador e espião é crucial para um trabalho de longo prazo. Os espiões, pela própria natureza de sua atividade, são pessoas solitárias com poucos ou nenhum confidente, e a conexão de um espião com um handler pode ser o único relacionamento de longo prazo que ele terá pelo resto da sua vida.
“O espião é a pessoa mais solitária do mundo,” diz Charney. “Quando ele cruza a linha para espionar, com quem ele pode conversar sobre isso? Ninguém, exceto o handler.” O handler explora essa situação, dizendo ao recruta: “Você é lindo, você é adorável.” É bem como a relação entre um cafetão e uma prostituta, explica Charney. “De vez em quando, se eles (espiões ou prostitutas) saírem da rota, o cafetão faz ameaças assustadoras. É uma mistura de amor e controle.”
Preparação para Entrevista e Recrutamento
A elusiva resposta certa
“Descreva seu relacionamento com sua mãe.”
Parece uma pergunta feita por um terapeuta, ou uma aspirante a namorada num primeiro encontro, mas essa é uma das perguntas feitas a possíveis agentes, e ajuda a dar uma ideia do interrogatório enfrentado por candidatos a espião. Em uma rara amostra do processo de recrutamento, publicado no FAS.org, o site da respeitada Federação dos Cientistas Americanos, Ralph Perro (um pseudônimo) revela detalhes das entrevistas e dos procedimentos de segurança pelos quais ele teve que passar quando se candidatou para trabalhar na NSA, a Agência de Segurança Nacional dos EUA. Como ele explica, o processo foi semelhante ao “procedimento médico mais invasivo que termina em -oscopia.”
Depois de passar por uma entrevista telefônica inicial, Perro foi chamado para entrevistas ao vivo e convidado a viajar de São Francisco a Washington, DC. No clima de sigilo estabelecido entre ele e seu recrutador, ele foi avisado que não deveria mencionar a agência de espionagem ao reservar seu voo e quarto de hotel — um cuidado que se revelou desnecessário quando Perro viu o e-mail enviado pelo hotel confirmando seu tipo de quarto como “NSA.” De acordo com a descrição de Perro, “algumas partes do processo de entrevista foram involuntariamente mais Agente 86 do que Missão Impossível.”
Enquanto esperava na recepção da NSA, Perro teve que responder um questionário de dez páginas em 30 minutos. Ele então foi convidado a fazer um exame psicológico computadorizado com mais de 500 declarações do tipo verdadeira/falsa. Ele lembra algumas delas: “Eu gostaria de trabalhar como guarda florestal; Ouço vozes na minha cabeça; Eu leio notícias de crime no jornal; Se alguém tiver seus bens roubados de um carro que não estava trancado, foi merecido. Outras declarações pareciam ainda mais intrigantes em seu propósito, como: “Tenho medo mortal de terremotos; Tenho dor no pescoço/mão; Eu gosto de crianças.”
Mais tarde, Perro foi entrevistado por uma psicóloga que lhe pediu para descrever seu relacionamento com seus pais, o relacionamento entre pai e mãe, se ele já havia tido aconselhamento psicológico, se ele já teria tentado suicídio, se abusava de substâncias, quantas bebidas ele toma por semana, quando ele bebeu álcool pela primeira vez, e se ele alguma vez roubou qualquer coisa, entre outras questões. Perro finalmente recebeu uma documento que o declarava ser pessoa “de baixo a médio risco.”
Ao longo do processo, Perro não tinha ideia de quais eram os critérios de avaliação ou quais eram as respostas corretas para que ele fosse contratado. A dúvida de fato faz sentido: como uma agência de inteligência pode avaliar a lealdade do candidato quando o seu trabalho é essencialmente baseado na traição? Como uma agência de espionagem pode garantir a confiabilidade de alguém que ela espera que seja desleal para com seus conhecidos, amigos e até familiares?
Depois de passar por várias etapas, Perro fez um teste de polígrafo, ou detector de mentiras, ainda que a eficiência de tal exame tenha sido amplamente desacreditada. Aldrich Ames, por exemplo, que espionou para a União Soviética durante nove anos quando ocupava uma alta posição na CIA exatamente no departamento de contrainteligência soviética, foi submetido a dois exames de detecção de mentira enquanto ele já estava traindo seu país, e ele passou em ambos. Apesar disso, mesmo que o polígrafo não indique com precisão se alguém está mentindo ou não, alguns acreditam que a máquina funciona de forma indireta: as pessoas ficam com tanto medo de serem pegas em uma mentira que acabam revelando segredos que de outra forma não divulgariam. Perro também passou por uma investigação do seu histórico de vida, e vários de seus vizinhos e colegas de trabalho foram questionados sobre ele. Sua candidatura foi ao final recusada.
Na indústria de espionagem existe uma teoria de que nenhum espião de valor é recrutado ativamente — os bons seriam aqueles que se candidatam por conta própria, pessoas que vêm trabalhar para uma agência por sua própria iniciativa e ideologia, ou porque já possuem informações secretas. O problema com esses espiões voluntários, também conhecidos como walk-ins (que entram sozinho, sem serem chamados) é que eles são os mais propensos a serem agentes duplos. É por isso que o ramo Force Research Unit do serviço secreto britânico decidiu recusar qualquer tipo de voluntário ou walk-in. O cuidado da Grã-Bretanha não surpreende, já que ela contratou e promoveu Kim Philby aos mais altos escalões da inteligência britânica. Philby, o traidor mais prolífico da história recente do Reino Unido, nunca escondeu suas simpatias comunistas, pelo contrário — ele se gabava delas. “A facilidade da minha entrada me surpreendeu,” escreveu ele em suas memórias. Foi tão fácil, na verdade, que ele e seu confuso handler soviético achavam que ele teria sido aceito na organização errada, por engano.
Entre as agências de inteligência, o Mossad tem uma maneira singular de recrutar e formar sua rede de espiões, explicada em detalhes por Ostrovsky e por Jacob Cohen, autor de Le Printemps des Sayanim. A agência faz uso de ajudantes em todo o mundo — pessoas muitas vezes abordadas diretamente e que não são remuneradas por seus serviços — que se sentem compelidos a colaborar com base em lealdades religiosas e ideológicas, ou por medo. Esses “ajudantes,” ou sayanim em hebraico, são recrutados entre judeus sionistas como agentes de plantão — pessoas que trabalham em seus empregos normais, mas que serão chamadas para uma missão conforme a necessidade.
Quando os espiões israelenses Eli Cara e Uriel Kelman foram condenados na Nova Zelândia em 2004 por obter fraudulentamente um passaporte com a certidão de nascimento de um homem com paralisia cerebral, foi revelado que o enredo dessa lenda foi ajudado por um sayan que tinha negócios no país e que fingiu que os agentes eram seus funcionários, fornecendo-lhes números de telefone e cartões de visita. Os três assassinos do Mossad enviados a Damasco para matar o comandante do Hezbollah Imad Mughnieh tinham lendas facilitadas por pessoas reais, sayanim que lhes emprestaram seus históricos de vida, suas profissões, nomes, passaportes e até endereço residencial na França, Alemanha e Espanha.
Ostrovsky não era um sayan, mas um katsa — um agente intensamente treinado em situações que demandam soluções imediatas, preparado para o imprevisível antes de ser enviado a uma missão. Em narrativa eletrizante, Ostrovsky relata uma das provas pela qual ele teve que passar. Seu instrutor o leva a uma rua em Tel Aviv e aponta para um prédio de apartamentos, escolhendo uma varanda ao acaso: “Quero que você fique aqui por três minutos e pense. Daí eu quero que você vá para aquele prédio e dentro de seis minutos quero ver você de pé na varanda com o proprietário ou o inquilino, segurando um copo de água.” Ostrovsky correu ao apartamento e disse à senhora que abriu a porta que precisava instalar uma câmera na varanda para monitorar acidentes no cruzamento. Da varanda, ele levantou o copo de água para o homem que o observava lá de baixo.
Anos mais tarde, o pensamento rápido exigido do agente naquele teste lhe seria útil na vida real. Ostrovsky tinha sido incumbido da missão de ir a um apartamento específico e se familiarizar com um dos homens que lá estava. Nos poucos minutos que teve para completar a tarefa, Ostrovsky comprou duas garrafas de vinho em uma loja nas proximidades, correu para o prédio e tocou uma campainha aleatória para descobrir o nome de um inquilino que estivesse ausente e usar seu nome como desculpa para entrar. Ele então sobe as escadas, chega ao apartamento visado e larga uma das garrafas na frente da porta, estilhaçando o vidro e espalhando o vinho. Ele toca a campainha do apartamento, se desculpa e pede um pano para limpar a bagunça. Depois dessa conversa inicial, ele então se oferece para compartilhar a segunda garrafa, conversando com seus alvos por duas horas, absorvendo suas histórias de vida e cumprindo sua missão.
John Kiriakou, o agente da CIA que se tornou um delator da agência, descreve em seu livro O Espião Relutante que um de seus treinos envolveu ter que pegar, matar e tirar a pele de um coelho para depois comê-lo. Ele falhou o teste, deixando o coelho viver. Em Deception, Edward Lucas descreve alguns dos exercícios feitos por estagiários na escola britânica de espionagem Fort Monckton: ir a um pub e coletar informações pessoais de pessoas que nunca viram antes, ou obter detalhes do passaporte, ou pegar dinheiro emprestado de um estranho. “Alguns estudantes bem-educados achavam isso tão humilhante que desistiam,” escreve Lucas.
Um dos mais prolíficos recrutadores de espiões na história dos EUA foi na verdade um agente duplo que recrutou outros agentes duplos para a União Soviética. John Anthony Walker, um oficial-chefe da Marinha dos EUA, codinome “Número 1” da KGB, espiou para os russos por quase duas décadas, vendendo informações classificadas e recrutando pelo menos três outras pessoas para o seu bando de dupla espionagem: seu irmão, seu filho e seu melhor amigo. Ele foi preso em 1985.
Eu mesma talvez tenha sido alvo de uma tentativa de recrutamento na conferência antiterrorista em Herzliya em 2013, mas não tenho meios de saber se esse foi realmente o caso. Estávamos no terceiro dia do masturbafest do terror, onde especialistas agiam como palhaços que transformam balões em figuras, dobrando teorias, números e lógica numa mesma forma final: a necessidade de se comprar mais e mais armas. Enquanto isso eu, como alguém com preocupações muito mais elevadas, fui aos organizadores do evento reclamar que o alto preço do ingresso — que como jornalista eu não precisei pagar — deveria ao menos incluir café expresso para ajudar o público a aguentar aquele circo onde todos os mágicos faziam o mesmo truque. No terceiro dia, finalmente, os organizadores substituíram o café instantâneo por café de verdade. E lá estava eu, esperando na fila para a minha vez de tomar um expresso, quando um senhor de baixa estatura e já idoso fura a fila bem na minha frente, uma escolha peculiar já que eu não estava no começo da fila. Eu sou geralmente educada e atenciosa com idosos, mas minha generosidade instintiva para com eles desapareceu naquele congresso. Quando o homem se voltou para mim, sorrindo, tipo vovô bonachão, eu olhei diretamente para ele e disse: “Eu normalmente te mandaria para o fim da fila, mas como no meu país temos filas dedicadas especialmente para as pessoas da sua idade, vou te deixar passar.” Para minha surpresa, ele respondeu em árabe com sotaque libanês. Era a primeira vez que eu ouvia a língua naquela conferência. “Onde você aprendeu o idioma?” eu perguntei. Para uma surpresa ainda maior, ele disse que tinha sido o chefe do Mossad no Líbano e no Irã.
Eu mal podia acreditar: lá estava, na minha frente, o homem que poderia me dar a maior entrevista da minha vida. Ele, por sua vez, tinha diante de si possivelmente a única pessoa que ele já viu que tenha sentando com Hassan Nasrallah, indiscutivelmente o maior inimigo de Israel, alguém que o Mossad vem tentando assassinar por décadas. Aquela furada de fila não podia ter sido uma coincidência. Vários pensamentos começaram a se chocar na minha cabeça. Me perguntei se me deixariam entrar de novo no Líbano se eu me encontrasse com aquele homem privadamente. Especulei se minha carreira — ou a minha vida — permaneceria intacta depois que uma entrevista honesta com aquele homem fosse publicada sem a sua interferência. Também pensei nas várias pessoas que, ao me verem alimentando mendigos na Rua Bliss em Beirute, me avisaram do lendário Abu Rish: um morador de rua mal-cheiroso, que caminhava lentamente de um lado a outro da Bliss enquanto moradores do bairro o ajudavam com comida e roupas, até um dia verem tanques israelenses avançando sobre Beirute e entregando a Abu Rish a roupa que ele de fato vestia, o uniforme das Forças de Defesa de Israel.
E então chegou a minha vez na fila para o café, e o homem ainda estava lá, de pé ao meu lado. Naquele momento estavam acontecendo quatro workshops simultâneos. Eu tinha decidido participar do painel “Incitamentos ao Terrorismo,” o único que contava com um palestrante palestino em toda a conferência. Eu precisava ver se alguém naquele lugar consideraria a hipótese de que talvez-possivelmente-quem sabe-por acaso uma das motivações para o terrorismo fosse a ocupação ilegal da sua terra e a desapropriação da sua casa — uma teoria que não foi explorada sequer uma única vez em toda a conferência. Fui caminhando até a sala e o homem que depois confirmei ser Eliezer Tsafrir foi andando ao meu lado, enquanto eu refletia sobre o percentual de probabilidade de ele escolher o mesmo painel que eu. Assim que eu me sentei ele se sentou imediatamente ao meu lado, apesar das várias cadeiras livres, enquanto Itamar Marcus, conhecido defensor de assentamentos ilegais em Israel (ele próprio morador de um deles), e tradutor de programas de TVs árabes, falava sobre o endoutrinamento anti-sionista na televisão palestina. Até que Marcus traduziu a palavra Cruzados como cristãos, e eu impacientemente interrompi para explicar o que deveria ser óbvio para qualquer tradutor honesto, que a palavra Cruzado carrega uma conotação de invasão territorial ausente na palavra cristão. Marcus descartou minha observação como uma nuance irrelevante, e um homem com um microfone anunciou — que surpresa — que a participação do palestino tinha sido cancelada e aquele velhinho enganadoramente afável ao meu lado continuava implorando por minha atenção e reverência jornalística enquanto eu continuava ouvindo o som insuportável das mentiras e do clique metálico incessante do crachá de pescoço mais estupidamente projetado do mundo, reverberando maniacamente naquela pequena câmara onde todo mundo pensava do mesmo jeito e eu me senti sufocada como alguém entre fanáticos de uma seita e me levantei quase correndo e fui embora, deixando a conferência muito antes do próximo coffeebreak — ainda que de café expresso.
Anos depois desse congresso, fui contactada por um antigo colega do Líbano para saber se eu consideraria a hipótese de trabalhar para um portal de notícias do Hezbollah. Eu teria alguma liberdade editorial, ele disse. Mas eu tinha minhas dúvidas. O jornal Al Akhbar, frequentemente um porta-voz do Hezbollah, tinha publicado uma resenha nada positiva do meu livro sobre política libanesa. Meu colega explicou que de fato eles não gostaram do meu livro, mas eles sabiam que eu era honesta. “Eles não têm meios para saber disso,” eu falei. “Eles sabem disso,” ele insistiu. “Eles sabem que você foi abordada, e que o Mossad não conseguiu te recrutar.” *
* É necessário deixar claro que não tenho como saber se aquela foi realmente uma tentativa de recrutamento, nem sei se aquela era a situação à qual — segundo o meu colega — o Hezbollah estaria se referindo.