Espiões — Traição, Segredos, Paranoia
[Esta é uma tradução do livro original de minha autoria, publicado no Reino Unido, que disponibilizo gratuitamente porque detenho os direitos autorais em Português. Para quem preferir no original, e pela Amazon USA, vai aqui o link.]
“Considerando que as agências [de inteligência] controlam as notícias que liberam para a mídia e asseguram sua disseminação acrítica através de seus aliados na imprensa, todas as histórias de espiões devem ser tratadas com extremo ceticismo.”
Phillip Knightley,
A Segunda Profissão Mais Antiga — O Espião Como Burocrata,
Patriota, Fantasista e Prostituta
O objetivo deste livro é dar ao leitor uma ideia clara e honesta do mundo subterrâneo da espionagem — porém de forma concisa. Eu concordei com essa condição imposta pelo meu editor. Como editora no Cairo, eliminei da nossa redação a incongruência, aplicada pelos melhores jornais do mundo, de se pagar jornalista pelo número de palavras usadas. “Mais palavras” não significam “mais informação”, e a cobertura de assuntos sobre espionagem é prova disso. Levante a mão se você, durante a avalanche de notícias sobre a “Guerra Contra o Terror”, ficou sabendo que, desde o 11 de setembro, o FBI fabricou mais planos terroristas em solo americano do que qualquer outro grupo ou indivíduo. Você provavelmente também nunca ouviu falar que o governo dos EUA estava por trás da morte de pelo menos 10 mil americanos que ingeriram bebidas alcoólicas envenenadas durante a era da Proibição. Tais informações não são apenas trivialidades mórbidas — são precedentes históricos que devem ser considerados na leitura de toda narrativa oficial.
Quando se trata de concisão, quanto mais curto o livro, mais tempo deve ser despendido pelo autor na identificação do essencial. Espero ter conseguido fazer isso aqui. Encorajo o leitor, contudo, a se aprofundar, e usar este livro como guia para futuras pesquisas. Para aqueles que não têm tempo, acredito que Espiões lhes ajudará a ter uma visão menos ingênua do poder invisível que nos controla a todos com mínima ou nenhuma supervisão externa. Se minha empreitada for bem-sucedida, grande parte do crédito se deve ao minucioso trabalho de investigação realizado pelos autores dos artigos e livros aqui citados, assim como às pessoas entrevistadas, a maioria delas anonimamente.
Este livro também se baseia em experiência pessoal. Embora eu não possa reivindicar conhecimento de espionagem em primeira mão, em todos esses anos como jornalista de política, e mais ainda na minha década como correspondente no Oriente Médio, entrevistei com exclusividade vários alvos de espionagem internacional e tentativas de assassinato, em especial: Hassan Nasrallah, líder do grupo xiita Hezbollah e notoriamente o alvo mais almejado pelo Mossad; Saad Hariri, primeiro-ministro libanês cujo pai foi assassinado numa explosão em Beirute; Fernando Gabeira, um dos sequestradores de Charles Elbrick, o embaixador dos EUA no Brasil; Leila Khaled, a revolucionária palestina e primeira mulher a seqüestrar com sucesso um avião de carreira; Salman Rushdie, quando o escritor ainda estava sob proteção da Scotland Yard por ser alvo de uma sentença de morte iraniana que prometia US$ 3 milhões por sua cabeça. Eu também entrevistei pelo menos uma pessoa que certamente esteve do outro lado dos ataques engendrados para parecer acidente e dos assassinatos políticos: Shabtai Shavit, chefe do Mossad de 1989 a 1996.
Se por um lado minha experiência no campo da espionagem é pouca, ainda assim ela foi além do que eu desejava. Anos depois de entrevistar Hassan Nasrallah, fui detida por agentes do próprio Hezbollah no Líbano por suspeita de espionagem depois que eles me viram tirando fotos em uma área xiita para minha tese de mestrado na Universidade Americana de Beirute. Eles me colocaram num carro, junto com meu motorista, e nos levaram a um prédio, trancando cada um de nós em uma sala numerada usada para interrogatório (essa história, originalmente publicada na Rolling Stone brasileira, está reproduzida no final deste livro).
Espero que Espiões instigue o leitor a tentar entender o aspecto mais importante — e devidamente ignorado — da espionagem e das guerras:
os seus objetivos, e não os seus meios.
Mesmo alguns bons jornalistas preferem gastar páginas discutindo métodos — alguns eufemizados como “capitulação extraordinária” e “interrogatório aprimorado” — focando nos meios ao invés de examinar a legitimidade dos seus fins, fazendo assim, de forma voluntária, um serviço gratuito para as agências de inteligência. As agências de espionagem fazem questão que continuemos a debater os meios, porque é aí precisamente onde o debate se torna interminável e propenso a nuances infinitas: É moral matar alguém que vai nos matar? É moral ameaçar os parentes de um assassino foragido para conseguir sua captura? É moral matar uma pessoa para salvar outras cinquenta? Compare essas perguntas com estas outras, referentes à finalidade de tais atos, e não a seus métodos: Aquela pessoa iria mesmo nos matar? O assassino foragido era mesmo um assassino? A morte daquela pessoa salvaria mesmo outras cinquenta? A espionagem oficial torna o país que a pratica mais seguro? Ela está de fato sendo usada para o bem público ou para interesses privados? Mais importante ainda: por acaso a espionagem é um efeito que está criando sua própria causa? É o fim que devemos investigar primeiro, para depois nos preocuparmos com seus meios; onde queremos chegar, e só então qual caminho devemos seguir.
O debate infindável sobre os meios (em vez de um debate sobre os fins) é um dos truques da técnica conhecida como “hangout limitado,” um estratagema pelo qual as agências de inteligência liberam pedaços de informação, promovem ou até confessam histórias negativas sobre si mesmas de modo a desviar a atenção de outros fatos mais incriminadores e evitar sua investigação. Um dos casos considerados por alguns pesquisadores como um exemplo de hangout limitado é a revelação dos detalhes do caso Irã-Contras (quando os EUA venderam ilegalmente armas ao Irã, um país inimigo e sob embargo econômico). A versão oficial, corroborada pela confissão do Coronel Oliver North, foi que os EUA teriam vendido armas ao Irã para financiar e armar milícias de direita lutando contra o governo socialista democraticamente eleito na Nicarágua. De fato, a estória parece terrível demais para ser mentira — a não ser, é claro, que você seja americano e tenha sido treinado a achar que tudo à esquerda da direita seja comunismo. Nesse caso, ela não seria tão terrível assim, certamente não mais terrível do que deixar um governo comunista tomar o poder em país tão próximo dos EUA. Eu estou entre uma minoria de pessoas que acreditam que há uma história muito mais sórdida, criminosa e imoral escondida sob a confissão oficial, uma história que carece da camuflagem atenuante da ideologia ou patriotismo, duas motivações que para muitos eleitores justificariam tal crime. Se você é a favor da intervenção americana em governos comunistas, a coisa que menos lhe preocuparia é como tal intervenção foi financiada, conquanto que tenha acontecido. Aqui vemos mais uma vez porque as agências de espionagem preferem discutir os meios: porque até quem é contra os seus fins acaba caindo inocentemente na discussão e, inadvertidamente, desvia o foco do que realmente interessa.
A verdade mais perturbadora sobre a indústria da espionagem é que o “complexo industrial militar,” como foi descrito pelo presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower, quase nunca trabalha em favor das nações que pretende representar. Ele age, sim, em favor das fábricas de armamento numa grande encenação onde o contribuinte não só aceita, mas até pede para patrocinar esses gastos cujos alegados frutos são impossíveis de serem verificados. Só em 2016, os contribuintes dos EUA gastaram US$ 70,7 bilhões em inteligência. O orçamento militar foi mais de meio trilhão de dólares. Em 2017, sob a presidência de Donald Trump, e mesmo com o Capitol Hill tão dividido, republicanos e democratas se uniram no Senado votando 89–9 para dar ao Pentágono US$ 700 bilhões de dinheiro dos contribuintes para guerras, US$ 28 bilhões acima do que Trump havia pedido.
Décadas atrás, Smedley Butler, o general que morreu como o fuzileiro naval mais condecorado na história dos EUA, declarou ter descoberto tarde demais que todas as guerras em que ele lutou por seu país eram, na verdade, conchavos de interesses comerciais privados:
“Ajudei a tornar o México e especialmente o Tampico [lugares] seguros para os interesses petrolíferos americanos em 1914. Ajudei o Haiti e Cuba a se tornarem um lugar ideal para que os meninos do National City Bank coletassem receitas. Ajudei na violação de meia dúzia de repúblicas da América Central em benefício de Wall Street. Ajudei a limpar a Nicarágua para o Banking House of Brown Brothers em 1902–1912. Eu trouxe eletricidade para a República Dominicana para os interesses de produtores de açúcar americanos em 1916. Ajudei a preparar a Honduras para as empresas de frutas americanas em 1903. Na China, em 1927, ajudei a garantir que a Standard Oil seguisse seu caminho sem ser molestada.”
Hoje, Butler e sua mensagem foram praticamente apagados dos livros didáticos de história nos EUA. Em seu lugar, as corporações e seus parceiros de mídia e entretenimento reescrevem a realidade, trabalhando em uníssono para cimentar na psique coletiva a associação entre corporações e nação, nacionalismo e protecionismo violento. É por isso que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos repassa milhões de dólares do contribuinte para NASCAR e NFL, entre outros, para que eles façam propaganda militar em seus eventos esportivos. As empresas do complexo industrial militar necessitam que as pessoas que as financiam as vejam como verdadeiramente nacionais e patriotas, mesmo que elas quase nunca beneficiem os cidadãos do seu país ou o solo em que se encontram. Seu aspecto nacionalista serve como uma bandeira que identifica os times diferentes no campo da dissidência manufaturada, onde só um time ganha, mas os verdadeiros cartolas de ambos os times nunca perdem. Enquanto isso, o contribuinte fica torcendo para o seu país preso ao sofá, assistindo à guerra como quem assiste a um jogo, financiando o show mesmo sem obter nada em troca além do entretenimento fugaz e um falso senso de propósito. Políticos conhecem bem essa encenação, e dela se beneficiam, não apenas na gorjeta que ganham transferindo dinheiro para o complexo industrial militar, mas também porque na mente simples de grande parte dos eleitores, não existe nada que eleve tão rapidamente a popularidade de um presidente como uma guerra.
A Captura Que Não Foi
Na manhã de 25 de setembro de 1997, Khaled Meshaal, chefe político do grupo de resistência palestino Hamas, estava caminhando até seu escritório em Amã, a capital da Jordânia, o exílio onde ele morava. Sem o conhecimento de Meshaal, dois agentes do Mossad esperavam por ele, disfarçados de turistas. Um segurava uma inocente lata de refrigerante; o outro escondia uma seringa cheia de um veneno que mataria o palestino sem deixar nenhum rastro ou causa de morte detectável.
Quando Meshaal se aproximava do escritório, os assassinos passaram por ele a pé e pulverizaram o veneno no seu pescoço, mas Meshaal não suspeitou de nada. Embora ele tivesse sentido algo frio e molhado em sua pele, ele também viu um dos homens abrindo a lata de refrigerante naquele momento, e seu cérebro fez exatamente o que se esperava dele — ele preencheu a dúvida da sensação molhada com a explicação lógica da bebida efervescente.
A ordem para o assassinato tinha vindo de Benjamin Netanyahu, primeiro ministro de Israel. Era para ser um assassinato silencioso, um golpe clandestino que faria Meshaal parecer ter morrido de causas naturais. (Em espionagem, uma operação clandestina é diferente de uma operação secreta. Enquanto numa operação secreta a autoria do ataque é desconhecida, numa operação clandestina não se sabe nem mesmo que um ataque aconteceu.) O Mossad tinha testado o enredo da cilada por meses em pessoas desavisadas nas ruas de Tel Aviv, usando água em vez de veneno, e Netanyahu ficou satisfeito com os resultados. Na vida real, contudo, enquanto Meshaal reagia como era de se esperar, entendendo o frio no pescoço como refrigerante que escapou da latinha, seu guarda-costas fugiu do previsto. Muhammad Abu Saif ficou desconfiado quando viu os dois homens correndo, e resolveu segui-los em seu carro enquanto os espiões escapavam a caminho da embaixada de Israel. Abu Saif sabia como navegar pelas ruas de Amã melhor do que os assassinos, e logo os alcançou. Ele abordou os homens na rua, e um homem que passava pelo local o ajudou a levar os israelenses à prisão. Enquanto isso, do outro lado da cidade, a saúde de Meshaal ia piorando rapidamente, e ele foi levado para o hospital, onde entrou em coma.
Para Israel, o fiasco corria o risco de se tornar um desastre diplomático. Com os espiões israelenses na prisão, o mundo logo descobriria a tentativa de assassinato. O Rei Hussein, por sua vez, iria se sentir traído pelos aliados israelenses, que conduziram uma operação clandestina em um país com o qual eles tinham um acordo de paz. Pior que isso, a operação vitimizou um homem que Hussein tinha prometido proteger. Mesmo que o rei tenha sido secretamente informado da trama por Israel, como alguns acreditam, ele agora tinha que salvar sua reputação e fazer o vizinho pagar pelo crime, dissipando qualquer suspeita de conluio entre ele e o estado sionista.
Em um primeiro momento, o governo jordaniano negou aos jornalistas que tivesse havido uma tentativa de assassinato contra um membro do Hamas. Privadamente, no entanto, o Rei Hussein exigiu que oficiais israelenses enviassem imediatamente o antídoto do veneno que estava destruindo o sistema respiratório de Meshaal. Netanyahu inicialmente se recusou. Danny Yatom, chefe do Mossad, voou de helicóptero para tentar acalmar a situação em Amã, mas não trouxe o antídoto com ele. Tempos depois, Yatom relatou que naquele dia ele rezou duas vezes: primeiro pela morte de Meshaal, e na segunda vez pela sua recuperação.
Netanyahu finalmente concordou em enviar o antídoto depois que o presidente dos EUA, Bill Clinton, intercedeu. Como restituição pela traição israelense, o Rei Hussein exigiu e conseguiu a libertação de dezenas de palestinos e membros do Hamas encarcerados em Israel, incluindo o líder Ahmad Yassin, o fundador do Hamas que cumpria o oitavo ano de uma sentença de prisão perpétua. Danny Yatom foi substituído como chefe do Mossad no ano seguinte.
Mossad e Aman
“Por meio do engodo, você fará guerra.”
Esse costumava ser o lema do Mossad, a principal agência de inteligência israelense. No que diz respeito à espionagem, poucas frases são mais sinceras. Tirado do Antigo Testamento, esse slogan de uso exclusivamente interno foi revelado em By Way of Deception (Por Meio do Engodo), o livro revelador de Victor Ostrovsky sobre sua experiência como agente do Mossad, ou katsa. Apesar de o slogan ter sido abandonado, a missão continua a mesma.
O Mossad é tão secreto que, até recentemente, o nome de seu chefe era mantido em segredo durante todo o seu mandato, e o orçamento da agência permanecia inteiramente oculto. Mas o Mossad preencheu os espaços vazios com uma imagem cuidadosamente construída. Através de notícias e filmes feitos sob encomenda, ele passou a associar o seu trabalho ao estilo romântico e sedutor do agente 007, dando um brilho heroico a missões de espionagem, e fingindo repudiar operações clandestinas que remetem aos fracos e covardes. Agências de espionagem geralmente vivem da fama de 007, mas grande parte do seu trabalho é baseado na covardia anônima e inimputável.
Apesar de ser mundialmente reconhecido pelos assassinatos de alvo preciso e pré-determinado, realizados pelo seu esquadrão kidon, as missões menos fotogênicas do Mossad — e talvez as mais importantes — são conduzidas pelo obscuro Departamento de Guerra Psicológica, ou Loh Ammah Psichologit (LAP). Uma das primeiras operações da LAP, desconhecida do grande público, foi chantagear soldados egípcios no período que antecedeu a guerra de 1967. Para tal fim, o LAP contactava a família e os amigos dos militares egípcios e lhes enviava informações fabricadas sobre uma suposta homossexualidade dos soldados, e outros dados, verdadeiros ou não, que poderiam lhes arruinar a vida. O medo de ver esses rumores se espalharem era o suficiente para que os soldados egípcios virassem vítimas da extorsão de Israel. Para aqueles que preferiam não sucumbir à chantagem, a morte era a escolha preferida. Em seu livro de 800 páginas sobre o Mossad, Espiões de Gideão, Gordon Thomas descreve como “uma professora na escola recebeu um telefonema de uma simpática senhora que lhe informava que o único motivo pelo qual um aluno estava se desempenhando mal era porque seu pai, um alto oficial [egípcio], tinha um amante secreto.” Depois desse telefonema, o oficial do exército se matou com um tiro.
Vale ressaltar que o Mossad nunca refutou formalmente o livro de Thomas, nem o processou. Thomas entrevistou dezenas de ex-oficiais do Mossad e do exército israelense, incluindo Rafi Eitan, o oficial da inteligência que dirigiu a captura do fugitivo nazista Adolf Eichman, e Ari Ben Menashe, o agente do Mossad que acabou se virando contra a agência. O ex-chefe do Mossad Meir Amit também foi entrevistado, e forneceu à contracapa do livro uma de suas frases de recomendação: “[O livro] Conta como foi — e como é.” Considerando que Amit é exatamente o homem responsável pelo obsceno episódio descrito acima, é possível ter uma ideia do teor das estórias que ficaram de fora.
Um dos fiascos mais notórios do Mossad é conhecido como O Caso de Lillehammer. Após o atentado olímpico de Munique em 1972 que terminou com a morte de 11 atletas israelenses, assassinos do kidon começaram a perseguir os suspeitos, matando-os um a um com métodos tão formidáveis quanto chocolate belga envenenado, “acidente” de carro e um telefone explodindo no ouvido da vítima. Mas um desses alvos foi erroneamente identificado e o Mossad acabou matando um homem inocente, um garçom argelino trabalhando na Noruega. Supostamente, o Mossad teria confundido o garçom com Ali Hassan Salameh, chefe do grupo terrorista palestino Black September. Esse caso, tão conhecido que tem seu próprio verbete nas maiores enciclopédias, é provavelmente uma daquelas “gafes” que o Mossad não se importa em expor, já que ela serve como uma pequena gota de erro confirmando um oceano de acertos. A não ser, é claro, que o que parece ter sido o assassinato de uma vítima inocente tenha sido de fato uma queima de arquivo. O fato de essa possibilidade não ter sido explorada por praticamente ninguém serve para ilustrar como funciona o hangout limitado: solta-se uma notícia trágica e auto-incriminante (o assassinato equivocado de um inocente) e assim todas as outras possibilidades passam a ser ignoradas, inclusive a possibilidade de que a vítima fosse parte de uma rede de informantes que precisou ser eliminada depois que deu informação e passou a saber demais. Existem outras falhas do Mossad — assim como outros de seus triunfos — que nunca foram admitidos, e não o serão até que uma prova irrefutável seja descoberta.
O Caso Lavon demonstra com perfeição que a primeira linha de defesa das agências de espionagem é negar os fatos. Em 1954, uma série de bombas explodiu no Egito. No dia 2 de julho, o escritório dos correios em Alexandria foi destruído, e cerca de duas semanas depois um cinema de propriedade de uma empresa britânica foi atingido, bem como um escritório diplomático dos EUA. As explosões pareciam ter sido cometidas pela Irmandade Muçulmana, ou algum outro grupo revolucionário, e por 51 anos foi essa a suspeita generalizada, aceita pela mídia oficial/comercial. O caso teve repercussões negativas para a Irmandade Muçulmana, e assustou pessoas e empresas britânicas no Egito. Foram necessárias cinco décadas para que Israel admitisse que o Caso Lavon fora operação de sua autoria, planejada e executada pelo Diretório de Inteligência Militar, ou Aman, a pouco conhecida, porém mais poderosa agência de espionagem israelense.
Aos olhos do contribuinte, o pagador de impostos que financia a atividade governamental, a maior justificativa para uma agência estatal que trabalha nas sombras, sem nenhuma supervisão pública, é o problema inicial que ela pretende resolver, como usar fogo para combater o fogo. Mas no mundo da espionagem, é difícil saber quem começou o incêndio. Em 1946, agentes do grupo paramilitar sionista Irgun se disfarçaram de trabalhadores palestinos e colocaram bombas no King David Hotel em Jerusalém, matando 91 pessoas, entre elas 17 judeus. De Paris, David Ben Gurion, um dos fundadores do estado de Israel, chamou os perpetradores de “inimigos dos judeus.” Sua opinião, contudo, não foi partilhada pelo oficialismo do novo estado. Menachem Begin, o homem que liderou a operação, acabou se tornando o primeiro-ministro do país, e o Irgun foi absorvido pelas Forças de Defesa de Israel, virando parte das forças militares. O apoio a esse ataque pode ser testemunhado até hoje na comemoração do seu aniversário, agraciada por líderes como Benjamin Netanyahu, que posa anualmente para fotos na frente de uma placa comemorativa louvando os “guerreiros da liberdade” que outros israelenses consideram terroristas.
Culpar um adversário por um crime que a própria agência cometeu é procedimento costumeiro no mundo da inteligência. Esse é um dos estratagemas amplamente utilizados em espionagem, conhecido como falsa bandeira: um ataque que tem como objetivo principal colocar a culpa em um inimigo. Se for bem feito, um ataque de falsa bandeira consegue atingir mais de um alvo com apenas um tiro. A explosão do King David Hotel é um desses exemplos: com apenas um golpe, a explosão falsamente incriminou o inimigo (os palestinos), enquanto fez o grupo paramilitar sionista que lutava contra esse inimigo parecer ainda mais necessário, e portanto mais merecedor de ajuda financeira e recursos públicos. O ataque também foi “bem-sucedido” em outro aspecto: ele causou a morte de dezenas de oficiais ingleses, acelerando a retirada do Reino Unido da Palestina, como queriam os líderes sionistas. Um outro ataque israelense — um dos mais desconcertantes da história recente — pode ter sido outra operação de falsa bandeira.
Em 8 de junho de 1967, um navio técnico dos EUA estava no Mediterrâneo ajudando Israel a vencer a Guerra dos Seis Dias contra países árabes. Oficialmente neutros, os EUA enviaram o navio USS Liberty para monitorar as comunicações entre os inimigos árabes de Israel e os soviéticos. Até que então, em um dos casos mais perturbadores de “fogo amigo,” quatro aviões de combate israelenses começaram a torpedear o navio de vigilância americano, matando 34 pessoas a bordo e ferindo 171. Israel sempre afirmou que aquele ataque tinha sido um caso de identidade equivocada, alegando que pensava estar bombardeando um navio egípcio. Mas 50 anos depois, documentos desclassificados dos EUA mostram a convicção praticamente unânime entre oficiais americanos e mais de duas dúzias de sobreviventes, encontrados e entrevistados pelo Chicago Tribune, de que Israel tinha pleno conhecimento de que estava atacando um navio americano, e que o teria feito de propósito.
O USS Liberty foi atacado com metralhadoras, canhões e até bombas napalm enquanto sua tripulação estava deitada no deck tomando banho de sol. De acordo com documentos oficiais americanos, Israel sempre soube que aquela era uma embarcação dos EUA. Existe inclusive uma gravação de áudio israelense entre o controlador que coordena o ataque e seu superior em Tel Aviv, afirmando verbalmente que ambos sabiam que o navio era americano. Até o momento registrado no áudio, apenas oito pessoas tinham sido mortas por Israel na embarcação. Inexplicavelmente, contudo, o ataque não só não foi interrompido a partir daquela informação, mas se intensificou. Quatorze minutos depois dessa comunicação gravada, Israel atacou novamente o navio, usando agora mais jatos e até barcos, matando outras 26 pessoas.
De acordo com Steve Forslund, um analista de inteligência dos EUA lotado na base da Força Aérea em Omaha, responsável pelo monitoramento das comunicações para o departamento de mais alto nível de planejamento estratégico militar dos EUA, “A estação de controle de terra [israelense] afirmou que o alvo era americano e pediu que a aeronave confirmasse. A aeronave confirmou a identidade do alvo como sendo americano, pela bandeira americana,” disse ele ao Chicago Tribune. “A estação de controle terrestre ordenou que a aeronave atacasse e afundasse o alvo, e que se assegurasse de que não deixasse sobreviventes.” De acordo com o Tribune, “Forslund disse que ele se lembrava claramente ‘da frustração óbvia do controlador [terrestre] com a incapacidade dos pilotos de afundar o alvo de forma rápida e completa.” Mais chocante talvez seja a reação do mais alto oficial de guerra dos EUA. Ao saber que o USS Liberty estava sob ataque e precisava de ajuda, o secretário de Defesa, Robert McNamara, “retrucou que ‘o presidente [Lyndon] Johnson não iria à guerra ou envergonharia um aliado americano por causa de alguns marinheiros.’” Na parte mais inquietante da reportagem do Tribune, McNamara não nega nenhuma dessas acusações. Quando perguntado sobre os acontecimentos, ele disse não ter “nenhuma lembrança do que fiz naquele dia,” exceto que “eu tenho uma lembrança que não sabia no momento o que estava acontecendo.”
Nenhum analista sério acredita que Israel estivesse planejando declarar guerra aos EUA, mas quase nenhum duvida que o ataque foi deliberado. Uma possível explicação para a agressão é que ela tenha sido uma operação de falsa bandeira que deu errado, executada com a intenção inicial de culpar o Egito e fazer com que os EUA finalmente entrassem abertamente na guerra contra os árabes. Outra conjectura é que Israel temia que o USS Liberty estivesse monitorando suas próprias comunicações, não apenas a dos árabes, e que inadvertidamente teria ouvido detalhes sobre o seu programa nuclear ilegal, até então secreto. Estrategicamente, seria menos prejudicial para Israel ter que pedir desculpas pelo assassinato trágico e involuntário de soldados aliados, do que ter que confessar a fabricação ilegal e deliberada de armas nucleares.
Para pessoas menos informadas, tal raciocínio é por demais frio e calculista para que tenha qualquer credibilidade, mas é precisamente este o tipo de equação feita em guerra e espionagem — a morte de uma pessoa é matematicamente justificável se salvar a vida de outras cem pessoas, ou mesmo se salvar a vida de apenas uma outra pessoa que seja no entanto considerada superior em posição, etnia, ranking. Agentes não-governamentais, incluindo alguns inimigos de Israel, também usam tais cálculos na batalha. Na guerra de 2006 no Líbano, por exemplo, o Hezbollah fez uso de táticas de guerrilha que alguns acreditam terem sido inspiradas por Mao e sua admoestação de que insurgentes deveriam viver entre as pessoas “como peixes na água.” Dessa maneira, ao esconder seus guerrilheiros e seu arsenal em áreas urbanas, o Hezbollah induzia Israel a matar cidadãos sempre que tentasse atacar ao grupo. Quanto mais civis mortos por Israel, maior a propaganda positiva para o Hezbollah.
Outra frieza lógica aplicada pelo exército israelense é conhecida como Procedimento Hannibal, uma diretiva que foi mantida em segredo por anos, que determina que um soldado israelense deve matar outro soldado israelense se esse último correr o risco de ser capturado e usado em um eventual acordo de troca de prisioneiros.
O Mossad possui uma longa lista de assassinatos formidavelmente executados contra seus inimigos declarados. A mídia, favorável, geralmente apresenta tais casos como confissões relutantes, em vez do que o que eles realmente são: a vanglória sobre as proezas do Mossad e a construção minuciosa da sua imagem. Ficam de fora da cobertura jornalística parcial os casos de covardia e traição de aliados. Um deles foi exposto no livro de Ostrovsky, e reiterado anos depois por Gordon Thomas — um escândalo que inexplicavelmente nunca chegou à capa dos grandes jornais.
No que se tornaria um dos ataques mais lesivos às tropas americanas, no dia 23 de outubro de 1983, em Beirute, um caminhão com quase uma tonelada de explosivos dirigiu a toda velocidade e invadiu a sede do 1º Batalhão dos 8º Fuzileiros Navais dos EUA, explodindo já dentro da sede. O ataque, possivelmente perpetrado pela milícia xiita Jihad Islâmica, matou 241 pessoas, 220 das quais eram fuzileiros navais americanos. De acordo com Ostrovsky e Thomas, o Mossad já tinha conhecimento do plano meses antes de ele acontecer, e sabia inclusive que caminhão seria usado, chegando ao ponto de manter tal caminhão sob vigilância. Embora os EUA e Israel tivessem um acordo de inteligência compartilhada, o Mossad se recusou a informar seus parceiros sobre o ataque iminente. “Não estamos lá para proteger os americanos,” disse o chefe do Mossad, Nahoum Admoni.
Entre os especialistas, também se acredita que o Mossad poderia ter impedido pelo menos a morte, ou mesmo o seqüestro e tortura, de William Buckley, chefe do escritório da CIA em Beirute. Em uma entrevista com Thomas, o diretor da CIA, William Casey, defende essa teoria: “Daí então o [chefe do Mossad, Nahoum] Admoni começa a tentar nos convencer que a OLP [Organização para a Libertação da Palestina] estava por trás do seqüestro. Nós sabíamos que os israelenses estavam sempre prontos para culpar Yasser Arafat por qualquer coisa, e por isso não acreditamos no início. Mas Admoni foi muito plausível. Ele construiu uma boa tese de acusação. Quando finalmente concluímos que não tinha sido o Arafat, já era tarde demais para Buckley. O que não sabíamos era que o Mossad também estava jogando sujo — fornecendo armas para o Hezbollah matar cristãos e, ao mesmo tempo, dando aos cristãos mais armas para matar os palestinos.”
A interferência do Mossad na política de outros países vai muito além dos seus interesses territoriais. O Mossad faz a intermediação da venda de armas para vários países, às vezes revendendo ilegalmente o que Israel comprou dos EUA. Foi o Mossad que armou os supremacistas brancos na África do Sul e supostamente vendeu armas químicas ao Irã através do negociante israelense Nahum Manbar, de acordo com o livro obrigatório, ainda que de revirar o estômago, The Shadow World — Inside The Global Arms Trade, de Andrew Feinstein (O Mundo das Sombras — Por Dentro do Mercado Global de Armas). Como fez no Líbano, o Mossad muitas vezes armou lados opostos da mesma guerra. No Sri Lanka, ele vendeu ao governo barcos torpedeiros para a patrulha costeira, enquanto forneceu aos Tigres Tamil, que lutavam contra o governo, equipamentos para destruir os mesmos barcos. Segundo Ostrovsky, o Mossad também “ajudou o Sri Lanka a enganar o Banco Mundial e outros investidores para conseguir milhões de dólares para pagar por todas aquelas armas” que eles estavam comprando de Israel. Junto com agência Aman, o Mossad também intermediou a venda de armamentos israelenses ao Iraque e ao Irã, simultaneamente, reforçando a máxima de que o único vencedor em uma guerra é aquele que vende as armas.
Um agente inusitado do Mossad foi Robert Maxwell, o magnata da mídia dono dos tabloides inglêses Daily Mirror e Sunday Mirror, e depois proprietário do jornal israelense Maariv.