Espiões — Traição, Segredos, Paranoia

Paula Schmitt
9 min readMay 30, 2019

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[Esta é A SEGUNDA PARTE da tradução do livro original de minha autoria, publicado no Reino Unido, que disponibilizo gratuitamente porque detenho os direitos autorais em Português. Para quem preferir no original, e pela Amazon USA, vai aqui o link. A primeira parte em Português está aqui.]

Um agente inusitado do Mossad foi Robert Maxwell, o magnata da mídia dono dos tabloides ingleses Daily Mirror e Sunday Mirror, e depois proprietário do jornal israelense Maariv. Maxwell colaborou de muitas maneiras — mediando as vendas de armas, escondendo milhões de dólares para o Mossad em contas bancárias secretas e até mesmo roubando do fundo de pensões do Mirror Group, dinheiro que supostamente emprestou para o Mossad para uma transação financeira nebulosa. Após uma desavença com seus superiores em Israel, seu trabalho como colaborador foi revelado e o mundo passou a saber que Maxwell era um agente do Mossad. Pouco depois, seu corpo foi encontrado boiando no mar.

Entre outras coisas, Maxwell ajudou o Mossad a capturar Mordechai Vanunu, o homem que revelou a existência da usina secreta e ilegal de armas nucleares em Dimona, Israel. Após suas revelações, Vanunu foi seduzido por uma katsa na Itália, e em seguida drogado e sequestrado pelo Mossad. Maxwell usou seu jornal para tentar destruir a reputação de Vanunu, mas o caráter do homem era difícil de manchar. Vanunu nunca exigiu um centavo pelo seu sacrifício e recusou todas as indicações ao Prêmio Nobel da Paz, pedindo ao comitê que seu nome fosse retirado da lista que outrora honrara Shimon Peres, exatamente o homem considerado o maior responsável pelo programa nuclear de Israel. Vanunu passou 18 anos na prisão, a maioria deles em cela solitária, e agora vive como prisioneiro de consciência, proibido de deixar Israel e conversar com jornalistas estrangeiros. De acordo com Seymour Hersh em seu livro meticulosamente investigado Opção Sansão, Peres supervisionou pessoalmente a captura de Vanunu porque temia que o denunciante revelasse o fato — praticamente ignorado pela mídia global — de que Israel “plantou minas terrestres nucleares ao longo das Colinas de Golã,” na fronteira com a Síria.

Em outros casos de ingerência em terras estrangeiras, fica difícil identificar as motivações do Mossad pela ausência de uma conexão óbvia com interesses territoriais, ou porque a intromissão não parece proporcionar a Israel um benefício imediato e palpável. Um dos mais intrigantes desses casos é contado em Espiões de Gideão, relacionado à morte da Princesa Diana, uma história que foi repetida por outros autores. De acordo com Thomas, o homem que dirigia o carro no momento do acidente que matou a Princesa Diana e Dodi Al Fayed estava na folha de pagamento do Mossad. Henri Paul, o chefe de segurança do Ritz Hotel em Paris que morreu no mesmo acidente, teria sido supostamente chantageado a colaborar com o Mossad sob a ameaça de que fosse revelado ao seu chefe que Paul estava fazendo dinheiro extra vendendo informações sobre celebridades aos paparazzi.

É também tido como fato entre muitos especialistas que o Mossad grampeou o telefone da casa de Monica Lewinsky quando ela estava tendo um caso com o presidente Bill Clinton, e enquanto Israel esperava que Clinton concedesse um indulto ao espião Jonathan Pollard, condenado por vender informação secreta militar dos EUA a Israel. Como uma curiosidade prá lá de intrigante, que você provavelmente não vai ver em nenhum jornal ou revista, o filme Wag the Dog antecipa por meses uma imagem que se tornaria uma cena icônica do escândalo Clinton-Lewinsky. Na comédia de humor negro sobre um presidente americano que inventa uma guerra para desviar a atenção de sua indiscrição sexual, telas de TV em um aeroporto mostram o presidente cumprimentando sua amante, ainda em idade escolar, ela com uma boina que viria a se tornar famosa, uma cena surpreendentemente similar a uma realidade que só viria à tona no ano seguinte. No Brasil, o filme foi renomeado Mera Coincidência. Famoso por usar chantagem para conseguir colaboração forçada, o Mossad já estaria em posse daquela imagem, e o filme deixa claro que era esse o caso. Se de fato tudo aquilo foi mais que uma mera coincidência, existem ao menos duas razões para a cena estar ali no filme: aumentar a pressão sobre Clinton para que ele concedesse o perdão a Pollard, mostrando ao presidente que sua escapada sexual era conhecida pelo Mossad e poderia ser revelada; ou a cena foi colocada ali por um diretor ou editor ultrajado, sabedor do que se passava, que quis deixar registrado que a manipulação descrita naquela obra de ficção de fato acontece, e ocorria em tempo real, sob os olhos da plateia.

Em 1980, o Mossad conduziu uma operação secreta para se livrar de um cientista, e conduziu depois uma operação clandestina para se livrar da prostituta contratada para distrair a vítima. De acordo com Ostrovsky, dois agentes em Paris cortaram a garganta de Yahya El Meshad, o físico egípcio que dirigia o programa nuclear do Iraque, depois que ele se recusou a colaborar com Israel. “Marie Express” foi a prostituta contratada pelos agentes do Mossad para passar a noite com Meshad no dia que antecedeu o seu assassinato. Depois de ver nos jornais a notícia da morte do físico, Marie suspeitou que os homens que a contrataram poderiam estar envolvidos com o caso. Assustada, ela foi à polícia e depois confiou essa informação a um homem, que por sua vez a repassou para o Mossad. Uma noite, enquanto Marie trabalhava no Boulevard St-Germain, “um homem em um Mercedes preto parou ao lado do meio-fio e fez um gesto para que ela se aproximasse do lado do motorista,” quando outra Mercedes preta “avançou em alta velocidade pela avenida. No momento exato, o motorista no carro estacionado deu um forte empurrão em Marie, mandando-a para o trajeto do carro que se aproximava” e matando-a instantaneamente.

As operações clandestinas do Mossad são facilitadas por uma vantagem incomum que a agência tem sobre outras — sua extensa rede de colaboradores conhecidos coletivamente como sayanim. Um sayan é geralmente um sionista ou simpatizante que trabalha e vive sua vida normalmente até que ele é chamado para ajudar a proteger espiões israelenses ou fornecer uma “lenda”: uma história falsa que ajuda a esconder a identidade real de um agente. Os sayanim são recrutados para proporcionar um local de trabalho convincente, ou uma linha telefônica fixa que possa ser atendida, um esconderijo, um carro alugado, uma conta bancária, uma cirurgia médica secreta etc. A maioria deles ajuda o Mossad gratuitamente, por ideologia. Segundo Ostrovsky, somente em Londres em 1990 havia cerca de 2.000 sayanim.

Colaboradores sayanim, ou mesmo até agentes regulares do Mossad, foram usados em um conjunto de eventos dos mais inexplicáveis de que se tem notícia em solo americano. Após uma investigação de quatro meses, Christopher Ketcham, jornalista da Salon, revelou que “por quase dois anos, centenas de jovens israelenses que falsamente afirmaram ser estudantes de arte espreitaram escritórios federais — em particular a agência americana de combate ao narcotráfico, DEA (Administração para o Controle de Drogas).” Segundo Ketcham, “Os relatos sobre israelenses misteriosos com um interesse inexplicável em vender obras de arte para funcionários do governo vieram de mais de 40 cidades dos EUA e continuaram durante os primeiros seis meses de 2001. […] Agentes da DEA, ATF [departamento de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos], Força Aérea, Serviço Secreto, FBI e US Marshals Service documentaram cerca de 130 incidentes separados de encontros entre eles e “estudantes de arte” israelenses. Alguns deles foram observados diagramando o interior de edifícios federais. Outros foram encontrados carregando fotografias que fizeram de agentes federais,” e visitando escritórios que não eram nem mesmo de conhecimento público e não tinham seus endereços divulgados. Esses “estudantes de arte” também “visitaram as casas de vários oficiais da DEA e outros altos funcionários federais.” Mais perturbador ainda, nem mesmo um único desses supostos estudantes estava matriculado em escola de arte. Um deles foi encontrado com recibos bancários no montante de quase US$ 180.000. É de surpreender que tal história — tão meticulosamente documentada como é — tenha sido desconsiderada por quase todos os outros grandes jornais e revistas.

Um tipo de missão clandestina realizada eficientemente pelo Mossad é a destruição da reputação de seus inimigos através de aliados na mídia tradicional. Alguns desses aliados são sayanim ajudando o Mossad por razões ideológicas. Outros são chantageados para fazê-lo, enquanto outros o fazem por dinheiro. Esses aliados na mídia foram cruciais para ajudar o departamento LAP do Mossad a espalhar histórias culpando palestinos ou muçulmanos por coisas como a explosão acidental do avião da TWA ou o bombardeio nos Jogos Olímpicos de Atlanta. As atividades do Mossad são obscuras, mas sua abrangência inclui ações tão curiosas e inimagináveis quanto a falsificação de moeda estrangeira. Ostrovsky diz que a agência costumava falsificar dinares jordanianos não só para economizar seu próprio dinheiro, mas também para inundar o país vizinho com excesso de moeda e causar inflação. Curiosamente, com todas essas atividades variadas e aparentemente díspares, quando se trata de combater ou prevenir o terrorismo contra Israel — sua missão principal — o Mossad parece estranhamente despreocupado.

Em setembro de 2013, eu participei do terrorfest de quatro dias conhecido como a Cúpula Mundial de Contraterrorismo em Herzliya, Israel, com a presença confirmada de altos funcionários das agências de inteligência israelense, norte-americana e britânica, incluindo ex-chefes do Mossad e Aman, e o ministro da defesa de Israel. Com tantos “contraterroristas” reunidos em um mesmo lugar, e todos eles tão cientes da ameaça do terrorismo, era de se esperar que o nível de segurança no local fosse altíssimo, sem precedentes. Mas quem esperou isso errou. O que aconteceu foi de fato o oposto. Na entrada do local do congresso não havia nem mesmo um detector de metais em funcionamento. Os crachás com os nomes das pessoas que entravam não eram verificados, e bolsas e sacolas não foram inspecionadas. Pessoalmente, eu me senti insultada com a facilidade com a qual minha inscrição foi aceita — a “inteligência” israelense certamente não leu Eudemonia, meu worst-seller sobre uma jornalista justiceira que quer assassinar alguns dos seus entrevistados.

Não obstante a aparente ausência de medo, uma coisa, no entanto, parece ter assustado aqueles destemidos espiões: a exibição do documentário The Gatekeepers (Guardiões do Portão). Anunciada e impressa no programa oficial, a exibição do documentário foi inexplicavelmente cancelada, juntamente com o painel de discussão com o diretor Dror Moreh. Eu não fiquei surpresa com o cancelamento; fiquei surpresa antes, quando acreditei que os chefes do “contra” terrorismo fossem mostrar um documentário no qual Yuval Diskin, ex-chefe da polícia israelense Shin Bet, diz as seguintes palavras:

“Para falar de forma cínica, felizmente para nós o terrorismo aumentou. Por que eu digo isso? Porque agora tínhamos trabalho e paramos de ter que lidar com o [estabelecimento do] estado palestino.”

Eu tinha essa frase memorizada, e decidi discutir tal proposição com o ex-chefe do Mossad Shabtai Shavit, mas ele inicialmente se recusou a falar comigo. Eu tentei novamente, e novamente ele disse que não. Sem rodeios, fui a sua palestra e sentei-me ao lado de sua esposa, uma mulher amável e elegante que, com simpatia, ouvia o quanto eu estava interessada em contra-terrorismo. Após a palestra, ela me apresentou ao seu marido e o convenceu a falar comigo. Shavit e eu nos encontramos em uma sala de conferências vazia. Apesar da minha insistência, ele nunca me permitiu gravar a conversa, mas me deixou digitá-la no meu computador. A entrevista acabaria por ser publicada na revista israelense 972mag, a única que aceitou publicá-la. Durante a entrevista, enquanto eu construía a teoria que queria explorar, Shavit admitiu que relações públicas são muito importante para Israel. Na verdade, ele disse, RP é “um dos pilares da nossa existência.” À luz dessa admissão, perguntei se a imagem de Israel melhorava a cada vez que acontecia um ataque suicida contra israelenses, e se esse de fato era o caso, poderíamos imaginar que a ajuda externa ao país… — Nessa hora Shavit interrompe abruptamente minha pergunta e segura meu braço: “Eu acho que você está descendo uma encosta escorregadia agora. Vamos parar,” ele disse, me perguntando logo em seguida: “Por quanto tempo você fica aqui em Israel?” Perplexa com a súbita curiosidade, perguntei se ele estava pensando em me assassinar. Shavit me olhou com um sorriso e respondeu com um sotaque hebraico bem forte: “Eu nunca assassinei uma mulher bonita.”

A proficiência do Mossad em assassinatos é tão lendária que ele criou sua própria franquia. O Mossad treina várias forças policiais em todo o mundo, e é contratado para homicídios terceirizados que outras agências de espionagem não têm permissão legal ou meios para fazer. Trabalhando abertamente com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, o Mossad vem colaborando menos publicamente com a agência de inteligência paquistanesa ISI, com a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrain. De acordo com Yossi Melman, co-autor de um dos livros mais vendidos sobre a inteligência israelense, Every Spy a Prince, uma vez que deixam sua agência, os veteranos do Mossad e das forças armadas israelenses muitas vezes acabam trabalhando como “consultores, treinadores para os regimes mais brutais no mundo, treinando traficantes de drogas na Colômbia, auxiliando ditadores na África, trabalhando com regimes brutais na América Central.”

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Paula Schmitt
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Written by Paula Schmitt

Award-winning Brazilian journalist, columnist at Folha, Estadao, Poder360, bylines in Rolling Stone, GQ, 972mag. MIddle East correspondent; PolSci from AUB etc

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