Espiões — Traição, Segredos, Paranoia
[Esta é A QUARTA PARTE da tradução do livro original de minha autoria, publicado no Reino Unido, que disponibilizo gratuitamente no Brasil porque detenho os direitos autorais em Português. Para quem preferir no original, e pela Amazon USA, vai aqui o link. A primeira parte em Português está aqui, a segunda parte, aqui, e a terceira parte está aqui.]
Espião contra espião contra espião
A vida de um agente duplo pode parecer repleta de medo e paranoia, já que esses agentes estão cercados por outros espiões, seus próprios colegas, as pessoas mais bem treinadas para detectar atividades nefastas. A realidade, no entanto, mostra que os traidores têm pouco a temer entre os colegas que estão traindo. Historicamente, a maioria dos agentes duplos dos quais temos conhecimento não foi desmascarada pelas pessoas que eles enganam, mas delatados por outros agentes duplos que traem a inteligência estrangeira com a qual estão colaborando. É o agente do país X, colaborando com o país Z, que só é delatado quando agentes do país Z também viram traidores. Em outras palavras, as pessoas que mais deveriam estar familiarizadas com as intrigas que se acontecem nas masmorras da realidade são enganadas por traidores em seu próprio meio, e quase nunca descobrem isso, a menos que outro traidor de uma agência inimiga dê ou venda a informação incriminadora. É espião contra espião contra espião numa roda infinita de traição. Foi isso que aconteceu com Robert Hanssen, considerado pelo FBI como o agente duplo mais nocivo da história da polícia americana.
A polícia nacional de um país, como é o caso do FBI, tecnicamente não se encarrega de espionagem, mas de contraespionagem — a vigilância e investigação de espiões estrangeiros e traidores em solo nacional. Foi exatamente enquanto trabalhava no setor de contraespionagem do FBI que Hanssen viveu a maior parte de uma carreira de agente duplo que duraria por 22 anos.
Hanssen entrou no FBI em 1976 e três anos depois fez contato com a inteligência soviética, oferecendo nomes de autoridades russas que ele sabia estarem ajudando secretamente os Estados Unidos. Durante todo seu tempo como traidor, Hanssen nunca revelou sua própria identidade aos russos, deixando sacos de lixo com documentos classificados e coletando seu pagamento em pontos de entrega morta — lugares pré-combinados em áreas públicas onde espiões deixam itens para serem coletados por outros espiões, sem nunca se encontrarem pessoalmente.
Filho de pai policial, Hanssen era membro da Opus Dei, um grupo da direita ultraconservadora da Igreja Católica. Dizem que Hanssen foi se tornando mais fervorosamente religioso à medida que sua deslealdade aumentava, e ele chegou a confessar sua traição ao padre de sua igreja várias vezes. Embora a motivação principal de Hanssen seja difícil de determinar, os cerca de US$ 600 mil que lhe foram pagos pela União Soviética devem ter desempenhado um papel persuasivo. De acordo com a revista Time, quando Hanssen começou a vender informações aos russos, o salário médio de um agente do FBI em Nova York era tão baixo que alguns deles precisavam de ticket refeição. Independentemente do dinheiro, o gosto pela emoção e a satisfação do seu ego podem ter sido determinantes para que Hanssen se tornasse um traidor. O risco de ser pego era particularmente alto, considerando que durante muitos anos o FBI foi chefiado por Louis Freeh, que não só frequentava a mesma igreja de Hanssen mas também tinha seus filhos na mesma escola dos filhos do agente duplo. Em mais de duas décadas de traição, Freeh nunca suspeitou de nada.
Em 1990, o cunhado de Hanssen, também agente do FBI, delatou-o como suspeito quando percebeu que a riqueza de Hanssen não podia ser explicada apenas pelo seu salário. Mas apesar de ter vindo de alguém tão próximo do suspeito, o alerta foi ignorado. Hanssen também foi pego duas vezes desobedecendo normas de segurança. Em uma delas, ele foi flagrado tentando hackear o computador de um colega, mas Hanssen alegou que estava tentando provar que o sistema era vulnerável.
Enquanto Hanssen continuava passando segredos dos EUA para a União Soviética, o FBI começou a suspeitar que havia um vazamento, mas focou no agente errado, um homem inocente que acabou sendo investigado inutilmente por dois anos. Enquanto isso, a traição causava sérios danos, e ao menos dois agentes duplos colaborando com os Estados Unidos foram delatados por Hanssen e executados pelos russos. Entre outras coisas, Hanssen revelou algo ainda hoje desconhecido de muitos moradores de Washington: um túnel secreto ilegal de 600 metros de comprimento, construído pelo governo dos EUA sob a embaixada soviética em Washington.
Frustrado com a falta de pistas, o FBI ofereceu a um dos seus agentes duplos russos uma quantia estimada em US$ 7 milhões para informações que levassem ao traidor. O informante não conseguiu descobrir o nome de Hanssen, mas forneceu ao FBI uma gravação do traidor conversando com seu handler russo, juntamente com alguns dos sacos usados nas entregas mortas. As impressões digitais de Hanssen ainda estavam ali. O FBI então colocou o suspeito sob vigilância, até que conseguiu flagrá-lo fazendo uma entrega morta em um parque em 2001. Ao ser finalmente algemado depois de 22 anos de traição, Hanssen se voltou para os agentes do FBI e perguntou: “Como vocês levaram tanto tempo?”
Aldrich Ames, o traidor americano cujo prejuízo causado só é menor que o infligido por Hanssen, também trabalhou em contrainteligência soviética, porém na CIA, não no FBI. Na posição que ocupava, Ames estava naturalmente em contato com oficiais russos que traíam a KGB. No início de 1985, no auge da Guerra Fria, Ames vendeu aos russos uma lista de seus traidores colaborando com os Estados Unidos. Pelos nove anos seguintes, Ames recebeu mais de US$ 4 milhões como pagamento por informações classificadas, enquanto seus colegas na CIA assistiam pasmados à queda dos seus agentes duplos na Rússia, um por um desaparecendo, sendo preso ou executado.
Naquela época, a espionagem da CIA na Rússia era tão pervasiva e penetrante que os oficiais brincavam que a CIA não tinha apenas uma estação na embaixada dos EUA em Moscou, mas duas outras mais: uma na sede da KGB e outra nos escritórios da GRU, a inteligência militar soviética. Até que os agentes duplos colaborando com a CIA começaram a ser pegos. Em agosto de 1985, um agente russo de contrainteligência trabalhando na Nigéria que colaborava com a CIA havia mais de dez anos foi preso em Moscou. Alguns meses depois, outro agente russo que ajudou a CIA em Lisboa foi preso. Um a um, os agentes duplos iam sendo descobertos. Em julho de 1986, o general aposentado Dmitri Polyakov foi preso. Ele era conhecido como a “jóia da coroa” dos colaboradores, e estava espionando para a CIA havia mais de 20 anos. Hanssen já havia avisado os russos sobre Polyakov, mas seu aviso fora ignorado. Com a confirmação de Ames, Polyakov foi finalmente executado.
Duas funcionárias da CIA, Sandra Grimes e Jeanne Vertefeuille, são amplamente reconhecidas como responsáveis pela identificação de Ames. Em seu livro Círculo de Traição, elas explicam que descobriram Ames através de um método pouco ortodoxo e não-científico que elas mesmas inventaram: elas pediram a alguns colegas que fizessem uma lista de pessoas que eles suspeitavam de ser o traidor. Esses colegas então deveriam atribuir um valor numérico a cada nome de acordo com sua posição na lista, ou seja, do mais ao menos suspeito. Ames raramente estava no topo das listas, mas ele estava presente na maioria delas, e sua “pontuação” portanto era mais alta do que dos outros suspeitos. Grimes e Vertefeuille comunicaram o resultado a seus superiores, mas para a surpresa de ninguém que esteja lendo esse livro, a CIA não agiu imediatamente e, assim como o FBI fez com Hanssen, ignorou muitas pistas e oportunidades de prender o culpado.
Outros casos foram mais fáceis de solucionar, porém não devido à inteligência de um lado, mas à falta dela no outro. Em 2010, Anna Chapman, uma ruiva atraente de 31 anos que espionava para a Rússia, foi pega em Manhattan depois que um agente do FBI sob disfarce lhe ofereceu um passaporte falso, que ela supostamente aceitou. Em um formulário que ela precisou preencher para adquirir um número de telefone temporário, Chapman havia declarado seu endereço como “99 Fake Street” (Rua Falsa, 99). O fato de Chapman não estar sob “proteção oficial,” ou seja, o fato de ela não ser uma diplomata russa com presença oficial nos EUA, privava Chapman de imunidade e ela foi então presa e processada. Ao final do processo, ela foi deportada para a Rússia em uma troca de prisioneiros.
Em 2013, foi a vez de um espião americano bancar o Agente 86 na Rússia. Ryan Christopher Fogle, que tinha proteção diplomática, foi abordado pela polícia russa em Moscou e algemado depois de tentar cooptar um agente do FSB (o sucessor da KGB) com US$ 100.000 em espécie. No momento do flagrante, Fogle usava uma peruca loira pouco convincente e portava uma bússola, um canivete suíço e uma carta dirigida ao potencial agente duplo russo que ele almejava recrutar. A carta começava com: “Este é um adiantamento [em dinheiro] de alguém que está muito impressionado com o seu profissionalismo e que apreciaria sua colaboração no futuro.” O documento prometia pagamentos de até US$ 1 milhão por ano para a obtenção de informações.
Involuntariamente, essa carta por si só revela sem rodeios a essência da espionagem: considerando que a renda média de um agente da CIA é de cerca de US$ 90.000 por ano, mas um agente duplo é recompensado com US$ 1 milhão pela mesma agência, fica numericamente claro que o governo dos EUA valoriza um traidor mais do que um trabalhador honesto.