[Esta é A QUINTA PARTE da tradução do livro original de minha autoria, publicado no Reino Unido, que disponibilizo gratuitamente no Brasil porque detenho os direitos autorais em Português. Para quem preferir no original, e pela Amazon USA, vai aqui o link. Quem não leu as partes anteriores, aqui estão os links para a primeira parte, segunda, terceira e quarta.]
Uma brevíssima história da espionagem
A ocultação e a descoberta de segredos têm sido um caminho para o poder há milênios
Se a lenda popular diz que a prostituição é a profissão mais antiga, a espionagem deve ter vindo logo em seguida. De fato, uma das primeiras narrativas escritas da história conta um caso em que figuram ambas as profissões. O Livro de Josué, no Antigo Testamento, fala de Raabe, uma prostituta de Jericó que gerenciava uma pousada. Nessa história, os israelitas, acampados em Sitim, enviaram dois espiões para avaliar as defesas de Jericó antes de atacá-la. O rei tentou capturar os espiões, mas Raabe os escondeu “sob talos de linho.” Por sua colaboração, Raabe e sua família tiveram suas vidas poupadas quando os israelitas invadiram e “destruíram completamente tudo o que estava na cidade, homem e mulher, jovens e velhos, e boi, ovelha e burro com o a lâmina da espada.” Em uma das maiores homenagens na cultura judaica, Raabe foi consagrada em Hebreus 11, conhecido como a maior honraria bíblica, e é a única outra mulher mencionada nesse capítulo além da esposa de Abraão, Sara.
No século V a.C., o filósofo chinês, general e estrategista militar Sun Tzu descreveu em A Arte da Guerra cinco tipos de espiões, uma classificação ainda hoje usada na espionagem moderna. Um espião local é um agente contratado entre as pessoas que serão espionadas. Um espião interior é alguém bem posicionado dentro das fileiras inimigas, de preferência um oficial. Um espião inverso é um agente duplo, um espião inimigo que muda de lado e trai seus antigos patrões. Um espião morto é alguém enviado com informações falsas para enganar o inimigo, uma artimanha que, quando descoberta, provavelmente resultará na morte do espião. Finalmente, um espião vivo é aquele que manipula outros, mas nunca é manipulado, enganado ou seduzido a cometer traição, retornando a seu território com as informações que foi buscar. Para Sun Tzu, o uso da espionagem era moralmente justificado porque a boa inteligência, ou a coleta de informações relevantes, poderia impedir guerras e salvar vidas. Ao longo da história, contudo, a espionagem vem sendo usada exatamente com o objetivo oposto: causar mais guerras e fazê-las durar mais tempo.
A espionagem é de fato tão antiga quanto as guerras. Os espiões de Alexandre Magno, no século IV a.C., costumavam contar os soldados das tropas inimigas à noite como parte dos preparativos para a batalha. Generais do Império Romano empregavam vigilância, espionagem, disfarces e agentes provocadores para incitar rebeliões. Séculos mais tarde, os astecas fizeram uso da pochteca, uma classe de comerciantes que percorriam longas distâncias sob proteção diplomática para fins de espionagem comercial.
Na Inglaterra Elisabetana do século XVI, o secretário de estado, Francis Walsingham, ajudou a criar técnicas pioneiras de decodificação, e um método para quebrar e restaurar selos de cera. Ele é considerado responsável por desvendar uma conspiração para assassinar a rainha Elizabeth, protestante, por sua prima Mary, Rainha dos escoceses, uma católica. Mary estava vivendo em uma espécie de prisão domiciliar imposta por Elizabeth e estava proibida de enviar ou receber cartas. Walsingham levou Mary a acreditar que suas comunicações com os co-conspiradores podiam ser feitas secretamente e com segurança, com cartas escondidas em barris de cerveja. Na verdade, os barris estavam sendo interceptados por Walsingham, que decodificava as mensagens e relacrava os barris, reunindo assim provas suficientes para enviar Mary à forca.
Na era moderna, as burocracias estatais, combinadas com ambições imperialistas, fizeram a espionagem evoluir, passando de simples ferramenta de governo para um quase governo em si mesmo. Isso se tornou mais pronunciado durante o que é chamado de O Grande Jogo, a luta prolongada que se iniciou na virada do século XIX entre os impérios russo e britânico pelo controle da Ásia Central. Durante mais de 100 anos, os dois impérios procuraram controlar e explorar o Afeganistão, a Índia, o Irã e outros países ricos em recursos naturais e importância estratégica. A complexidade na construção de alianças políticas, a organização e terceirização das guerras, e o planejamento de subterfúgios a milhares de quilômetros de distância demandaram uma infraestrutura de inteligência mais profissional do que os países envolvidos possuíam. Foi durante esse período que a espionagem adquiriu um papel duradouro.
O império austríaco foi o primeiro a estabelecer um serviço de inteligência militar permanente, o Evidenzbureau, em 1850. Na Grã-Bretanha, a espionagem militar começou a ser conduzida pelo departamento governamental responsável por medição topográfica e estatísticas durante a Guerra da Crimeia (1853–1856). Na França, o Ministério da Guerra criou o Deuxième Bureau em 1871, e Alemanha, Itália e Rússia seguiram o exemplo com suas versões próprias. Com a criação de agências exclusivas de inteligência, a espionagem deixou de ser uma arma escondida para se tornar uma ferramenta política aceitável, e maquinações feitas nas sombras passaram a fazer parte do governo tradicional. Não mais sob a autoridade e controle dos departamentos militares e navais, a espionagem criou raízes na administração civil nos países europeus mais poderosos. O MI6 e o MI5, por exemplo, respectivamente as agências de espionagem estrangeira e doméstica no Reino Unido, eram originalmente dois ramos da inteligência militar. No início do século XX, portanto, as agências de inteligência finalmente se consolidaram como parte da burocracia política existente.
À medida que o uso da espionagem se expandia, novas agências iam sendo criadas para combater o trabalho de espiões estrangeiros — uma solução que gerou mais problemas a serem resolvidos, um ouroboros que criava a sua própria necessidade. Foi com essa nova mistura de política, engodo, desconfiança e traição que uma governanta francesa na embaixada alemã em Paris encontrou um bilhete rasgado em 1894 e decidiu entregá-lo à contraespionagem francesa, dando início ao caso Dreyfus — um dos maiores fiascos de espionagem da história conhecida, e um evento que dividiu a opinião pública na França. Alfred Dreyfus, um oficial judeu do exército francês, foi falsamente acusado de transmitir informações aos alemães. As provas eram escassas, no entanto, e o processo foi mal conduzido. Investigações futuras identificaram o Major Walsin Esterhazy como o espião, mas demorou 10 anos para que o nome de Dreyfus fosse limpo.
Ao longo dos séculos XIX e XX, as lealdades políticas externas e domésticas ficaram mais complexas, e as burocracias de inteligência passaram a mirar em alvos internos mais como regra do que exceção. A agência russa Okhrana, por exemplo, perseguiu a dissidência doméstica através de sabotagem, operações de falsa bandeira e vigilância ampla dos bolcheviques.
A Primeira e Segunda Guerras mundiais tornaram-se importantes campos de testes para técnicas de espionagem. Um dos estratagemas mais simples e no entanto mais eficientes foi o monitoramento das ferrovias, o que permitia aos militares saber do transporte de suprimentos, armas e o movimento das tropas. A coleta de inteligência pode ter sido crucial para que os Estados Unidos declarassem guerra à Alemanha na Segunda Guerra Mundial, depois que agentes britânicos interceptaram uma comunicação interna entre o secretário de negócios estrangeiros alemão Arthur Zimmermann e o embaixador alemão no México. No telegrama codificado, Zimmermann se ofereceu para ajudar o México a recuperar dos EUA os territórios do Texas, Arizona e Novo México.
O Estado Subterrâneo
A Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética foi terreno fértil para a espionagem, e batalhas convencionais foram substituídas por intriga, sabotagem e conflitos terceirizados a países alinhados com a União Soviética ou os EUA. Nessa época, a Agência Central de Inteligência (CIA) já havia sido criada, substituindo o antigo Escritório de Serviços Estratégicos (OSS). Fundada em 1947, a CIA não representava apenas uma mudança de sigla — sua criação marcou o início do “estado subterrâneo,” (deep state) um grupo de funcionários não-eleitos que governam praticamente sem supervisão e às vezes mesmo sem a aprovação do governo oficial, uma burocracia clandestina permanente que nunca sai do poder, independentemente do resultado eleitoral. Mais do que nunca, estabeleceu-se então uma desconexão irreconciliável entre governo público e governança secreta, aparência e realidade.
Uma teoria da conspiração é às vezes uma verdade que ainda não foi comprovada, inclusive porque a verdade é frequentemente escondida do público com o apoio da lei. O governo dos EUA, por exemplo, tem o direito legal de ocultar informações por décadas, uma prática replicada em vários outros países.
Com a terceirização das guerras e da coleta de inteligência, tornou-se ainda mais fácil encobrir e manipular a realidade, entre outras razões porque a terceirização da inteligência facilita a defesa jurídica conhecida como “negação plausível” — a possibilidade de agentes (públicos e privados) negarem conhecimento ou responsabilidade por um erro e assim evadir a cadeia hierárquica. Vários exemplos disso aconteceram no Iraque, quando mercenários da empresa privada Black Water, contratada pelo governo americano, cometeram crimes de guerra, mas não podiam ser julgados por um tribunal militar porque eram civis. E porque eles eram civis, os oficiais militares acima deles não podiam ser considerados responsáveis pelas violações cometidas pelos seus subalternos.
O uso de empresas terceirizadas na inteligência oficial facilita a criação de conspirações de várias outras maneiras. O argumento de que existe mais transparência quando empresas privadas estão envolvidas não resiste à história recente. Uma conspiração notável, e ainda assim surpreendentemente desconhecida do público em geral, é a história de Nayirah.
Em 10 de outubro de 1990, uma jovem kuwaitiana de 15 anos conhecida simplesmente como Nayirah deu seu testemunho a um comitê de direitos humanos no congresso americano. Nayirah relatou aos congressistas como o exército iraquiano invadiu uma maternidade no Kuwait e roubou as incubadoras, atirando os bebês no chão e deixando-os morrer ali mesmo. Esse evento, chocante e repulsivo, tornou-se o estopim perfeito para uma guerra contra o Iraque. George Bush pai mencionou o caso duas vezes antes de declarar guerra ao país. A história alarmante foi repetida em todo o mundo e até a Anistia Internacional condenou o crime. Dois anos depois, contudo, revelou-se que Nayirah era na verdade uma parente da família real do Kuwait, e que a tal história era uma mentira totalmente fabricada pela empresa de relações públicas Hill & Knowlton.
Mais recentemente, a captura de Osama Bin Laden em 2011 talvez não tenha sido de fato uma captura. Louvada nos jornais e no cinema como “a maior perseguição da história contra o homem mais perigoso do mundo,” de acordo com a versão oficial a operação foi um notável esforço de espionagem que revelou o esconderijo de Bin Laden e culminou na Operação Lança de Netuno — uma invasão de seu covil em Abbottabad por uma equipe de Navy SEALS, que matou Bin Laden e jogou seu corpo no mar. Mas o premiado jornalista Seymour Hersh diz que a realidade foi muito diferente e muito menos cinematográfica. Segundo Hersh, o serviço secreto paquistanês mantinha Osama Bin Laden sob prisão domiciliar desde pelo menos 2006. E o governo dos Estados Unidos não teria descoberto esse fato através de uma longa e formidável missão de espionagem, mas de maneira bem mais prosaica e pouco sofisticada — os EUA teriam sido informados do paradeiro de Bin Laden por um traidor de uma agência de espionagem de outro país, que teria oferecido a informação por dinheiro.
Ameaças Imaginárias e Riscos Fictícios
Crimes de falsa bandeira
Em 1997, o governo dos EUA desclassificou documentos relacionados à Operação Northwoods. Devidamente documentada, a trama ainda é surpreendentemente desconhecida de grande parte dos americanos. Ela foi elaborada em 1962 pelo Departamento de Defesa e pelos Chefes de Estado Maior dos EUA, e consistia na realização de uma série de ataques terroristas em solo americano que envolveriam a morte de civis inocentes, saqueamento de aviões, explosão de navios e barcos que transportavam refugiados cubanos — tudo feito de maneira a colocar a culpa em Fidel Castro. Os ataques tinham a intenção de justificar uma guerra com Cuba, mas o presidente John F. Kennedy vetou o plano antes que ele fosse executado. Mas Kennedy autorizou, no entanto, outro projeto secreto, a Operação Mongoose, um conjunto de 33 “operações escuras” (black ops) em Cuba, que incluíam sabotagem econômica, destruição de plantações, propaganda anti-Castro e até o bombardeio de portos. A operação chegou a incluir uma maneira de fazer a barba de Castro cair, e de contaminar um estúdio de TV com alucinógenos pouco antes de o líder cubano gravar um discurso televisionado, de modo a interferir com o seu desempenho. Apesar de estarem completamente documentadas, essas operações ainda são amplamente ignoradas pelo mesmo povo em cujo nome elas foram planejadas.
Em 2010, o historiador Keith Jeffery teve um acesso sem precedentes aos arquivos históricos do serviço britânico de espionagem estrangeira, o MI6, que resultou em um livro revelador. Em The Secret History of MI6: 1909–1949, Jeffery nota uma ausência inexplicável de documentos relacionados ao Holocausto, uma coincidência improvável que sugere que eles foram destruídos pelo MI6. Mas entre os registros posteriores que não foram destruídos, Jeffery encontrou evidências de um plano cuja atrocidade desafia a crença.
A chamada Operação Envergonha (Operation Embarrass) foi de uma perfídia inacreditável, mas é um exemplo emblemático de operações de falsa bandeira porque com um só golpe conseguiu atingir vários alvos inimigos. O principal objetivo da Grã-Bretanha naquele momento era impedir a imigração de judeus para a Palestina, então sob controle britânico. Para isso, a Grã-Bretanha colocou explosivos em barcos de refugiados judeus, desencorajando novas imigrações. Um documento oficial encontrado por Jeffery dizia que o plano de intimidação “só conseguirá ser eficaz se alguns membros do grupo de pessoas a ser intimidado realmente sofrer consequências desagradáveis,” mas não há registro de mortes. Ainda assim, vários barcos foram de fato afundados ou tornados não-navegáveis. A operação também conseguiu causar danos a países que desejava prejudicar, usando os portos desses países ou explosivos supostamente feitos por sua indústria nacional, fazendo que parte da culpa recaísse sobre eles.
A Grã-Bretanha decidiu que a responsabilidade pelos ataques seria colocada sobre os palestinos, e criaram um grupo falso para reivindicar a autoria do crime: Defensores da Palestina Árabe. Cartas falsas supostamente enviadas pelo inexistente grupo palestino foram endereçadas a altos funcionários do governo e editores de jornais, datilografadas “em máquinas de escrever de nacionalidade apropriada” e com selo de postagem de Paris. A Grã-Bretanha também aproveitou o plano para incriminar os soviéticos, afirmando nas cartas que os russos estavam tentando forçar o estabelecimento de um estado judeu comunista. Para impulsionar ainda mais os soviéticos a desconfiar dos judeus e agir contra a imigração judaica, o governo britânico chegou a deixar documentos forjados em uma boate de Viena frequentada por agentes russos, dizendo que “os imigrantes judeus que ficavam atrás da cortina de ferro eram uma valiosa fonte de informações sobre as atividades russas nessa área.” Os barcos a serem sabotados deveriam partir da França e da Itália, incriminando esses dois países (ao final, apenas barcos que navegavam dos portos italianos acabaram sendo usados). Quando o navio conhecido como Exodus 1947 foi apreendido pela Grã-Bretanha na Palestina e seus 4.500 refugiados foram enviados de volta, um oficial do MI6 lamentou o quanto isso resultou em propaganda negativa para a Grã-Bretanha e em ótima publicidade para os sionistas: “[Isso] poderia ter sido evitado se o Ministério das Relações Exteriores tivesse permitido que o SIS [MI6] tomasse a ação apropriada contra o [navio] quando sugeriram fazê-lo.”
A invasão da Finlândia pelos soviéticos também se baseou em um evento de falsa bandeira. Em 26 de novembro de 1939, um posto de guarda soviético na fronteira com a Finlândia, perto da cidade de Mainila, foi bombardeado e quatro soldados russos foram mortos. Mais tarde descobriu-se que foi a própria União Soviética que matou seus homens para receber apoio popular e justificar uma invasão da Finlândia.
Uma missão perfeita de falsa bandeira cumpre vários objetivos ao mesmo tempo, e consegue se livrar do Inimigo A e ainda culpar o inimigo B pelo crime. Mas ataques de falsa bandeira têm outro efeito pernicioso e de amplo alcance que vem sendo ignorado por analistas: eles ajudam a confundir análises políticas confiáveis ao designar os culpados como vítimas, e vice-versa, embaralhando cenários, distorcendo a realidade e criando o sentimento insidioso e persistente de que a verdade é inalcançável.